Friday, March 01, 2024

Sonhos que sonhei... onde estão?

 

A minha maquinaria orgânica anda a precisar, urgentemente, de ser oleada, pois não só me obriga a passar a noite em interacção com acabrunhantes personagens do quotidiano fabril, como, esta noite, me pôs a fugir de um galináceo.

Eu estava refastelada num banco de jardim, em Faro, rodeada de escuríssimos arbustos e obscuras flores. Era noite. Nisto, oiço:

- Encontrei-te meu amor.

E fechei os olhos. Este ia ser um sonho de encantar, de romance, o meu tipo de romance favorito: aquele que não acontece. De repente, ainda envolta em suspirantes delíquios, senti uma picadela no ombro. Uma senhora picadela, diga-se, de tal modo que me permiti deslizar para a realidade do meu quarto e averiguar o caso. Seria algum companheiro de cama que me agredira? Talvez uma das seis almofadas. Mas elas são tão fofinhas! Ou o equipamento informático (e não só) armazenado debaixo da almofada (inteligente!) do lado esquerdo: o tablet, o Kindle, o telemóvel, o comando da televisão, o comando da box, o comando do ventilador, o pacote de lenços, a caixa de rebuçados para o catarro, a caixa de Strepsils e, triste é dizê-lo, o mata-moscas. Seria possível uma tal agressão por parte de um destes amiguinhos nocturnos? Abri os olhos. Felizmente, continuava no jardim de Faro, mas tinha um bico junto ao meu nariz e dois olhinhos muito redondos a olharem para mim. Era um galo! Levantei-me, fazendo uma prece com os dedos em cruz  e tentando, até, fazer a dança da chuva, junto a um canteiro. Mas o galo continuava ali, com as asas muito abertas e espanejantes. Mais: vinha, pata ante pata, de bico em riste, na minha direcção. Pior: ouviu-se, algures da figura da ave:

- Sou eu, amor.

- Quem? – Respondi. – Como se atreve?

E ele, teimoso, avança, esvoaçante e penugento, directo a mim. Foi quando decidi pôr-me em fuga, espavorida, pelas ruas da cidade.

As portas das casas reluziam, fechadas. Das janelas, espreitavam as cortinas, em desalinho de curiosidade. As ruas iam ficando mais estreitas e mais vazias. Éramos apenas eu, em correria, o galo, em esforço cacarejante, e os postes de luz, altos e hirtos, espalhando uma luz miúda.

Estava a ser muito cansativa aquela correria infernal. O bicho não se cansava. Mas, nisto, não só deixei de lhe ouvir o estampido das unhacas no empedrado das ruas, como vislumbrei o jardim onde estivera, há não muito, tão sossegada. Rumei para lá, a arfar. Sentei-me num banco e ouvi:

- Estou aqui, meu bem.

O galo? Olhei. Não. Era um homem, muito bem vestido, um pouco démodé, com um chapéu de feltro na cabeça, da qual se elevava uma frondosa pena.

- Hein? – disse eu.

- Hoje é dia de amá-la.

- A mim?

- Claro, meu benzinho fofo. Hoje é dia 29 de Fevereiro.

- Ah! Desculpe. Estou cansada. Fui atacada e perseguida por um galo. Doem-me os pés de tanto correr… Foi horríiiiiveele!

- Um galo? Olhe que não. O meu benzinho está aí desde que cheguei. Muito estranha. Eu chee..

- Não viu um galo? Uma ave imensa cheia de penas??

- Não, benzinho. A coisa mais parecida com uma ave, diga-se, sou eu, que me engalanei com uma pena para a homenagear.

- Pena de galo?

- De pavão. Pavão!

- Então está a dizer que eu sou mentirosa, que não aconteceu nada?

- Aconteceu sim, a fofa, assim que eu cheguei, ficou muito inquieta. Disse umas palavras misteriosas e depois foi para o canteiro aos pulos…

- Desculpe? Euuuu? Aos pulos?

- Sim. Era uma espécie de co… coreografia. Destruiu as plantas todas e arrancou os goivos pela raiz. Olhe!

- E não fez nada? SE eu fiz isso, por que razão não me agarrou?

- Por causa da poeira, amorzinho fofo. Veja como está cheia da terra.

De facto, havia sobre mim um imenso véu de terra e até algumas ervas. Não podia ser! Expliquei então que tinha sido a correria pela cidade, com as estradas cheias de buracos e com a criatura penugenta a levantar imensa poeira com as patas. E perguntei ao homem démodé, engalanado, se já tinha visto as unhas dum galo.

- Que pergunta, gatinha fofa. Venha aqui para a espanejar.

- Deixe-me. Não me espaneje! Vou embora.

- Fofa! Fofa, estamos a ter a nossa primeira discussão. Deixe-me estreitá-la em meus braços…

E arregalou os olhos, muito contente.

Abraçamo-nos. E, do jardim de Faro, fomos transportados para uma bela casa. Era um sítio antigo, de tectos altos, amplo, com uma sugestão de reposteiros de veludo grená e mobília escura e elegante. A roupa começou a sair do nosso corpo, espalhando-se pelo chão, que brilhava sob a luz de um candeeiro de cristal. Felizmente não ficámos nus, o que seria muito impróprio e indiscreto. Em vez disso, à medida que a roupa saía, íamos ficando cobertos de uma penugem longa e macia, que ondulava. E foi nestes preparos que iniciámos uma sessão de beijos, com os lábios unidos em ventosa, que terminou aos rebolões no chão.  Entre beijos e cabeçadas nas paredes e mobiliário, sempre de rojo, com evidente benefício para o enceramento do parquet, corremos toda a casa descendo, até, compridas escadarias. Por vezes, parávamos, ofegantes, um pouco lilases até, já a arroxear, enchíamos os pulmões e, antes de continuarmos o deslizamento beijoqueiro e cabeceante, olhos nos olhos, eu dizia-lhe:

- Ai, querido. Que cabeçada!!

E ele, enlevado e esfuziante de paixão incontida, retorquia:

- Cabeçada? Eu não tenho cabeça! O meu bem fez-ma perder.

Mas tinha eu, e dorida. A testa, um verdadeiro catálogo dos abundantes galos que iriam despontar.

Aos primeiros minutos do dia 1 de Março, o meu homem elegante e démodé desapareceu. Foi-se. Eu fiquei só e pensei: o meu primeiro sonho de amor. E foi tão lindo!

https://br.pinterest.com/pin/216665432057912001/?nic_v2=1a2JU1DAN, em 27 de Setembro, 2020

NOTA: O ÚLTIMO TEXTO DEIXOU-ME TÃO ESQUISITA, QUE TIV NECESSIDADE DE TERMINAR O DIA COM ESTA HISTÓRIA DE AMOR....

No comments: