Sunday, August 09, 2009

NÃO TENHAS MEDO DO ESCURO


Claro que não. Não tenho medo do escuro. Tivesse eu medo do escuro, do vazio (ninguém me liga!), da noite, e até dos ladrões, e estava bem arranjada! Por outro lado, não gostasse eu de falar sozinha, dançar sozinha e de fazer grandes orgias livrescas e...estava bem arranjada! Ou seja, começo a falar deste livro, agradecendo as palavras bem intencionadas do título!

Que livro! About death all over! Que surpresa! É um livro que começa com chave de diamante e fecha com chave de diamante. Pelo meio, há portas cujas chaves são de prata, também há bronze...e ouro, também: a chapadona na tromba do homem que era um poema vivo foi uma porta aberta com chave de ouro. Foi de mestre. Deus sabe que ele estava a pedi-las!

Comecei a leitura com algumas ideias sobre o que ia encontrar. Uma obra literária escrita por um professor de Literatura e que, ainda por cima, é meu co-orientador de tese, é dose!! Esperava muito do que está escrito sob o ponto de vista de Edite. Esperava encontrar uma Edite: professora; amante de poesia; culta; bem nascida; doente - não tanto, mas também, a proximidade da morte deve deixar-nos pensativos, sensíveis e atentos. Esperava encontrar aquele ambiente: de cultura; de grande música; de grande poesia. Etc. Mas não esperava, de modo algum, aquilo que faz deste romance algo de único que é... deixa-me cá ver... a sua essência (estou a ser choninhas) . Seja, a sua essência: e qual é ela? A irrealidade!? A ambiguidade!? A paradoxicalidade (?)!? Vejamos, o livro é uma tragédia ou uma comédia? Qual é a mensagem? (OK, parece que já não se usa ver qual é a mensagem) Eu, para ser sincera, depois de o ler e de parar de rir, e de recuperar o fôlego, e de me recompor, cheguei à seguinte conclusão: "Deus afinal parece que existe e morrer é bom!!" Nada que eu não tivesse já intuído. Isto quanto à mensagem! E as personagens? Estão vivas? Estão mortas? Estão delirantes? Estão embriagadas? - Aquele tio bebe e come de mais, e não são só papos de anjo!!- São reais? São imaginárias? Há no mínimo uma que é completamente irreal, ou mesmo surreal: a auxiliar de acção educativa da Escola Secundária de Amarante. Todos os professores do secundário concordarão comigo, ao lerem esta passagem:

« - Venha comigo, senhora doutora, venha comigo. Vou levá-la ao Conselho Executivo: é por aqui, por favor. Por aqui...» (p. 166)

Que tal? Já foram encaminhados assim por alguém? Isto, recordo, quanto a personagens irreais. Claro que há pessoas muito vivaças a passearem-se por aqui e por ali, isto após o seu passamento. Mas isto não sabemos se é da ordem do irreal ou não. Só o saberemos após o nosso próprio passamento! Mas, dizia eu, este romance pretende o quê? Divertir-nos? Consegue fazê-lo. Diz-se na contracapa que «é um romance de mistério, uma homenagem à poesia portuguesa e uma reflexão sobre o valor da vida e o poder da arte.» Mistério, sem dúvida. Todo ele é um mistério! A homenagem à poesia, também. Mais que isso, é uma chamada de atenção para o que é, de facto, poesia, que não tem nada a ver com algumas garatujas que aparecem amiúde como tal. Poesia não é um empilhar de palavras enigmáticas na vertical, nem, tão pouco, uns versos toscos daqueles que fazem sempre rimar mão com coração e tia com melancia. Irritante, a ideia de que todos sabem escrever poesia!! Da última vez que li, no Jornal de Letras, os poemas das novas promessas "do sector", fiquei com os cabelos em pé durante uma semana! Mas, em frente. O poder da arte, concordo. Mas, quanto ao valor da vida, já tenho algumas dúvidas. Não podia ser de outro modo, tendo falado, lá atrás, em ambiguidade. De que valores se fala neste romance? O que acontece verdadeiramente neste romance? Qual é a história? Uma professora que está doente e....(omito informação, não posso dizer tudo),... mas será que ela está mesmo doente, ou está tão doente como o senhor de barbas está... (omito, quem leu sabe o que falta nos espaços!).. ou está tão doente e morreu tanto como a japoneira/ cameleira está fixa no seu lugar, como é próprio das japoneiras! (aqui não omito, porque já se sabe, através da contracapa, que a japoneira andou em bolandas, assim como se sabe que a defunta desapareceu!) Quem estudar o livro vai ter que me contar a história, porque eu li e não a sei contar. ´

Agora para uma coisa totalmente diferente. Eu não esperava um livro cujo tema principal (e único?) fosse a morte! Eu não esperava aqueles incidentes do Pórtico e da Cúpula, ou seja, a primeira e última partes do romance respectivamente. Não esperava aquela agilidade humorística da linguagem, não esperava aquelas personagens excêntricas. A própria Edite, depois de ..., estava tão mais animadinha! Há depois uma série de frases e situações memoráveis... absolutamente do outro mundo. Termino com uma delas.

Começo por esclarecer que, como é dito na contracapa, «um cadáver desaparece». Mas, claro, torna a aparecer. Esse cadáver é o de Edite e o seu tio e irmão esperam-no para lhe fazerem o enterro. A passagem que transcrevo dá conta do estado de espírito do tio e do irmão ao saberem que o corpo foi encontrado:

«Ria-se baixinho, o tio Henrique:
- A Edite voltou da pândega - dizia ele.
E ria-se de novo. Depois assobiava.
Eu acabei por comentar:
_ Se calhar, era melhor não ter voltado.
Pensava eu no caixão - nesse caixão onde ela devia estar: ia dar de caras pela primeira vez com o cadáver da minha irmã. E isso inquietava-me. Talvez por este motivo conduzia eu agora devagar - não com a pressa do início da viagem.
Entretanto, o tio Henrique olhou para mim, antes de declarar:
- Ó Maurício, deixa-a cumprir com os seus deveres de morta, coitada...» (p. 56)

Excelente!

(Magalhães, Gabriel, Não tenhas medo do escuro, Lisboa, Difel, 2009)