Friday, April 03, 2015

Os Canibais



Não sou admiradora do cinema de Manoel Oliveira. Compreendo a sua assinatura única, a originalidade, o estranhamento. Enfim, aquelas coisa que se associam a cinema “highbrow”, a literatura “highbrow”, a cultura “highbrow”, etc. No que respeita à literatura, porém, como gosto mais de palavras do que de imagens, consigo “sofrer” a leitura de certos livros – impenetráveis (chatos!) - até ao fim. Tal não acontece, contudo, em relação ao cinema. Para mim, cinema é sobretudo entretenimento. Do cinema, quero emoções fortes: riso e/ou emoção. Não quero estar encerrada numa sala claustrofóbica a admirar, em silêncio, imagens lentas, perturbadas apenas por falas curtas proferidas por personagens estátua. É esta, aliás, a memória que me ocorre, quando recordo a visualização de “Francisca”, em Coimbra, no Gil Vicente.

Tínhamos ido ao cinema, eu a E e o C, instados pela F, grande leitora dos Cahiers du Cinema e espectadora de festivais de cinema de autor. Lá fomos, também, devido ao facto de a mulher de um nosso professor fazer parte do elenco. Éramos todos estudantes universitários na plateia – embora não parecêssemos. Lembro-me de ouvir risos e alguns impropérios, do tipo: não há pachorra! Lembro-me, também, de ver uma das personagens, no grande ecrã, a segurar um coração de carne e lembro, ainda, o barulho de passos a abandonar a sala. Isto tudo antes de adormecer no ombro do C. O nosso grupo tinha decidido que permaneceria até ao fim, e assim foi, para não sermos alvo da ira da F, como tinha acontecido com o filme “Os abismos da meia-noite”. Acabou por não ser uma má noite de cinema, embora nenhum de nós soubesse dizer porquê. A F, satisfeita com a nossa “envergadura intelectual”, tomou o nosso mutismo por admiração e fez o favor de nos explicar todo o simbolismo da história. Ficámos agradecidos.

Um dia, porém, já na Covilhã, apanhei na televisão o filme “Os Canibais”, um dos filmes da minha vida. Inexplicavelmente, hoje, nos artigos sobre a morte do cineasta, só li uma pequena referência a este filme. Será demasiado comercial? Talvez. Pessoalmente, acho-o grandioso, desconcertante, mais: humorístico. Se me dissessem que daria uma gargalhada num filme de Oliveira, não acreditaria. Depois, aquele homem que se desconjunta, cada parte do corpo para seu lado, faz-me lembrar o conto de Poe, “The man who was used up”. Aliás, aprecio bem mais os contos “witty” de Poe, do que os de terror, embora goste de “The black cat”. O final de “Os Canibais”, por sua vez, é igualmente inesquecível: se bem me lembro (má escolha de palavras), pessoas com cabeças de animais rodopiam em torno de um lago em frente de uma casa antiga, belíssima. “Os Canibais”, numa palavra, ou duas/ou pouco mais? Uma obra de arte preciosíssima!

Para mim, Oliveira é o realizador desse filme. É também um modelo de uma vida bem vivida e longa. Uma vida invejável, no bom sentido. Até na morte, não estando, que se saiba, debilitado durante muito tempo a sofrer, pode dizer-se que foi vitorioso: o coração, certamente cansado, limitou-se a parar.

 RIP

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