Friday, March 12, 2010

Poema


a morte não me
assusta, hei-de voar-lhe
no céu da boca
assim que se preparar para
me engolir

Valter Hugo Mãe
(lindo!)

Frágil


O i noticia o suicídio de um professor de música. Ao que consta, não controlava os alunos. Consta também que não tinha já muito cabelo. E os alunos lebravam-no disso. Eu sei como é. Alguns dos meus alunos também me lembram que o meu nariz tem milímetros a mais. Coisas de "crianças", são tão pândegas! Não é por mal. As reacções à morte anunciada do professor são as do costume: o professor tinha "fragilidades psicilógicas", os alunos apontados como tendo contribuído ALEGADAMENTE para o suicídio do professor vão ter apoio psicológico, os pais desses alunos estão indignados por os associarem a tal acto, etc.. Dentro de dois ou três dias o caso sai da agenda mediática e morre.
Morto está, sem dúvida, o colega frágil. Já não tem que assistir às notícias sobre a sua morte. Mas, se tivesse, muito provavelmente, dirigia-se novamente para a ponte 25 de Abril e mergulharia no Tejo. Na escola, na sociedade e no mundo, não há espaço para quem é frágil!

Sunday, March 07, 2010

Ah! A vida...


Passadas duas semanas, é como se não tivesse acontecido. Desde o dia do acontecimento insólito, que ando para escrever, para relatar o sucedido, a história. Já tentei, na minha mente, várias abordagens: a trágica, a de choque, a da indiferença, a barroca, etc. Agora, aqui a escrever, finalmente, sem a sensação de peso nos ombros e de aperto na garganta, é como se nada, repito, tivesse acontecido. Recorro, então, à abordagem objectiva. A história, o sucedido, conta-se em três tempos. Eu, que não saio nos fins de semana, para evitar, claro, encontros, contactos com o resto da humanidade, pelo menos da que se encontra na minha zona, mas, beneficiando, também, essa humanidade com a minha ausência, eu, dizia, saí nesse fim-de-semana. Para comprar a revista Sábado, que é um concentrado de humanidade de papel, de que eu não prescindo. Lá, em papel e letras, está um amigo que eu não dispenso, embora por vezes o ache muito irritante. Impunha-se, por isso, que fosse comprar a revista, é que as saudades dele apertavam! Saí, a correr, deixando a mesa posta, pois não disporia de mais tempo para estar com o meu amigo de papel e letras, senão a hora da refeição. Chegada ao Centro Comercial, pensei, aproveito e compro laranjas, mas, felizmente, a frutaria estava fechada. Que bom, pensei, menos tempo perco. Mas, de repente, ouvi, "então, hoje estás atrasado, Nuno? já aqui passei". Bem, afinal a frutaria ia abrir no momento, e eu estava ali... entrei, ia levar as laranjas. Não tinha passado tempo nenhum, ou, pronto, um bocadinho de tempo, quando ouvi... "então, caiu?". Não liguei. Não tenho curiosidade sobre o que se passa à minha volta. Depois ouvi um roçar de roupa, e novamente, "magoou-se?". Virei-me. O dono da loja estava debruçado sobre alguém. Só podia ser a outra cliente. Aproximei-me para prestar auxílio. Estava uma senhora no chão, na zona da entrada. Respirava de forma audível, arranhada. Ajoeilhei-me no chão, peguei nas mãos da senhora, amparei-lhe a cabeça com a minha mala e disse ao rapaz que chamasse a ambulância. A senhora estava imóvel, só expelia o ar de forma arranhada. Depois o rapaz disse-me, que o INEM estava a caminho e que devíamos virar a senhora para o lado esquerdo. Foi o que fiz. Era um corpo pesado. Tirei o meu casaco para aconchegar a senhora e fui falando com ela, e apertando-lhe as mãos. Entretanto foram surgindo outras pessoas, também querendo ajudar, mas eu não arredei pé, tomada, que estava, da certeza que a senhora estava a morrer ali à minha frente. Pus-lhe a mão no pescoço para tentar sentir os batimentos cardíacos, mas nada. Era um corpo sem vibração. Depois veio a equipa do INEM, e um bombeiro, e eu à espera do meu casaco e da minha mala. A mala obtive-a após o médico tapar a senhora por completo com um plástico (?). O casaco, que estava debaixo do corpo da senhora, que só depois da vinda da GNR podia ser levantado, não tornei a vê-lo. Foram sendo contados episódios da vida da senhora. À pergunta "o que aconteceu?", a resposta era "estava bem e, de repente, caiu". De facto, foi mais ao menos isso. Há no entanto, uma correcção a fazer. A senhora não caiu. Cair é algo que fazem os vivos, porque tropeçam, escorregam, perdem o equilíbrio ou têm uma tontura, por exemplo. Ou seja, para cair tem de se estar vivo, e a senhora não estava. Logo, não caiu, foi derrubada pelo ímpeto da vida a fugir-lhe. Cedeu à força da gravidade. Abateu-se no chão. Imobilizou-se. Perdeu a vibração. Precipitou-se. Partiu. Não conseguiu voar. Não conseguiu pairar. Estatelou-se no chão, com um barulho sussurrado de roupas. Não teve como manter-se de pé. Não pode evitar precipitar-se para baixo. Tudo. Mas cair não. Cair é coisa daqueles que ainda vivem.