Sunday, March 07, 2010

Ah! A vida...


Passadas duas semanas, é como se não tivesse acontecido. Desde o dia do acontecimento insólito, que ando para escrever, para relatar o sucedido, a história. Já tentei, na minha mente, várias abordagens: a trágica, a de choque, a da indiferença, a barroca, etc. Agora, aqui a escrever, finalmente, sem a sensação de peso nos ombros e de aperto na garganta, é como se nada, repito, tivesse acontecido. Recorro, então, à abordagem objectiva. A história, o sucedido, conta-se em três tempos. Eu, que não saio nos fins de semana, para evitar, claro, encontros, contactos com o resto da humanidade, pelo menos da que se encontra na minha zona, mas, beneficiando, também, essa humanidade com a minha ausência, eu, dizia, saí nesse fim-de-semana. Para comprar a revista Sábado, que é um concentrado de humanidade de papel, de que eu não prescindo. Lá, em papel e letras, está um amigo que eu não dispenso, embora por vezes o ache muito irritante. Impunha-se, por isso, que fosse comprar a revista, é que as saudades dele apertavam! Saí, a correr, deixando a mesa posta, pois não disporia de mais tempo para estar com o meu amigo de papel e letras, senão a hora da refeição. Chegada ao Centro Comercial, pensei, aproveito e compro laranjas, mas, felizmente, a frutaria estava fechada. Que bom, pensei, menos tempo perco. Mas, de repente, ouvi, "então, hoje estás atrasado, Nuno? já aqui passei". Bem, afinal a frutaria ia abrir no momento, e eu estava ali... entrei, ia levar as laranjas. Não tinha passado tempo nenhum, ou, pronto, um bocadinho de tempo, quando ouvi... "então, caiu?". Não liguei. Não tenho curiosidade sobre o que se passa à minha volta. Depois ouvi um roçar de roupa, e novamente, "magoou-se?". Virei-me. O dono da loja estava debruçado sobre alguém. Só podia ser a outra cliente. Aproximei-me para prestar auxílio. Estava uma senhora no chão, na zona da entrada. Respirava de forma audível, arranhada. Ajoeilhei-me no chão, peguei nas mãos da senhora, amparei-lhe a cabeça com a minha mala e disse ao rapaz que chamasse a ambulância. A senhora estava imóvel, só expelia o ar de forma arranhada. Depois o rapaz disse-me, que o INEM estava a caminho e que devíamos virar a senhora para o lado esquerdo. Foi o que fiz. Era um corpo pesado. Tirei o meu casaco para aconchegar a senhora e fui falando com ela, e apertando-lhe as mãos. Entretanto foram surgindo outras pessoas, também querendo ajudar, mas eu não arredei pé, tomada, que estava, da certeza que a senhora estava a morrer ali à minha frente. Pus-lhe a mão no pescoço para tentar sentir os batimentos cardíacos, mas nada. Era um corpo sem vibração. Depois veio a equipa do INEM, e um bombeiro, e eu à espera do meu casaco e da minha mala. A mala obtive-a após o médico tapar a senhora por completo com um plástico (?). O casaco, que estava debaixo do corpo da senhora, que só depois da vinda da GNR podia ser levantado, não tornei a vê-lo. Foram sendo contados episódios da vida da senhora. À pergunta "o que aconteceu?", a resposta era "estava bem e, de repente, caiu". De facto, foi mais ao menos isso. Há no entanto, uma correcção a fazer. A senhora não caiu. Cair é algo que fazem os vivos, porque tropeçam, escorregam, perdem o equilíbrio ou têm uma tontura, por exemplo. Ou seja, para cair tem de se estar vivo, e a senhora não estava. Logo, não caiu, foi derrubada pelo ímpeto da vida a fugir-lhe. Cedeu à força da gravidade. Abateu-se no chão. Imobilizou-se. Perdeu a vibração. Precipitou-se. Partiu. Não conseguiu voar. Não conseguiu pairar. Estatelou-se no chão, com um barulho sussurrado de roupas. Não teve como manter-se de pé. Não pode evitar precipitar-se para baixo. Tudo. Mas cair não. Cair é coisa daqueles que ainda vivem.

2 comments:

julio césar said...

rsrsrs, estava para dizer, depois de me rir, que não é caso para rir, há que ter um certo respeito pela morte, mas isto só mesmo a si, ou dito doutra maneira, só você conseguiria descrever de maneira tão cómica e realista um acontecimento tão trágico. Só queria ter visto...rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs, com todo respeito, que descanse em paz.

Adélia Rocha said...

Cómico... eu não tinha essa intenção... foi das coisas mais intensas que me aconteceu...