Friday, May 17, 2024

A Escolha

 





Surgiu no jornal Expresso, um dia destes, um texto em que se colocava aquilo a que chamaram, se não estou em erro, o dilema do urso. O dito dilema consistia em perguntar a mulheres se preferiam ficar sozinhas, numa floresta, com um homem desconhecido ou com um urso. Claro, que comecei por tentar responder à questão. Imaginei-me numa floresta distante, no meio de um grande arvoredo, com um curso de água algures, a fazer-se ouvir, e vi surgir, subitamente, por entre as árvores, um homem. Aqui chegada, parei para pensar. E pensei que haveria 90% de possibilidades de que esse homem fosse uma pessoa decente, que ficasse tão contente de encontrar ali um ser humano, como eu própria ficaria. Imaginei que juntos encontraríamos estratégias para estarmos mais seguros e confortáveis e também mais fortes para sairmos ilesos da floresta. E se fosse uma mulher mal intencionada, com instinto homicida? Bem, desde que estivéssemos as duas equipadas de unhas e cabelos, estaríamos em pé de igualdade, para nos esgadanharmos e puxarmos o cabelo até cairmos as duas para o lado, sem maior agravo que algumas clareiras no couro cabeludo e alguns arranhões em esteroides. Depois, seria fugir uma para cada lado, rezando alto e suplicando ao divino, que não colocasse novamente tal besta no nosso caminho. Fácil! Mas o problema não envolve um encontro com uma mulher, um encontro mais ou menos simétrico. Envolve um homem desconhecido e um urso. Ponderada a questão dos 90% de homens normais, há que pensar nos restantes 10%. Nos predadores. Naquelas criaturas que mal podem acreditar na sorte que têm, quando lhes aparece, do nada, uma mulher, ou seja, um parquinho inesgotável de diversões várias. Alguém que dominam facilmente, posto que são fisicamente mais fortes. Isto, tendo em conta uma definição de força da qual não está ausente uma grande dose de cobardia e de falta de vergonha. E o urso? Aqui chegada, resolvi ver o que é que se tinha apurado a partir da resposta de outras mulheres,

Bem, as mulheres, de um modo geral, não hesitavam: preferiam o urso! Este é previsível. Se se sentir ameaçado, avança e faz o que tem a fazer rapidamente e em força. Se não pressentir ameaça, mantém-se longe. 1 a 0 para o urso. Mas os filmes de ursos a atacarem pessoas levou-me a apreciar outros ângulos da questão, antes de me decidir pela resposta certa, do meu ponto de vista. E foi quando me lembrei de uma história que ouvi no Homem Que Mordeu o Cão,

Uma rapariga de uns 7 anos ficou abandonada numa floresta. Não me lembro das circunstâncias. Nessa floresta havia macacos, espécie com a qual se sentiu mais identificada e resolveu seguir. Mas os macacos não pareciam muito satisfeitos. Afinal, ela falava, o que para um macaco não é um comportamento muito aceitável. Ela, no entanto, apesar do acolhimento frio, continuou a segui-los, a comer o que eles comiam e a adoptar alguns comportamentos deles. Deixou também de falar, posto que era uma competência humana muito pouco adaptativa naquele contexto. E os macacos foram-se habituando a ela. Um dia, diz, ficou muito emocionada, quando um dos seus companheiros lhe agarrou na mão e encostou a cabeça no ombro dela. E os anos foram passando. Ela já não tinha esperança de que a encontrassem, mas, pelo menos, não estava sozinha. Um dia, porém, os macacos ficaram muito agitados e emitiam uns sons de alarme. O que seria? O seu território tinha sido invadido por um grupo de caçadores. Os macacos, sábios, fugiram deles, mas ela viu naqueles homens uma oportunidade de ser resgatada. E foi. Os homens desconhecidos agarraram na menina, levaram-na para uma casa de prostituição e venderam-na. Ela passou, assim, da liberdade da floresta e dos amigos símios, para a clausura infecta de uma casa de passe, onde ficou até aparecer um homem. Um homem normal. Um ser humano. Claro que se casaram e foram felizes para sempre.  

Qual seria a probabilidade de eu encontrar um homem normal? 10%, segundo a minha própria estatística. Se calhar generosa. Ultimamente, tenho ouvido tantas enormidades da boca de um homem desbocado, desprezível e tóxico que não hesito em responder: o urso! Quero encontrar no meio da floresta um urso. E se ele for bem forte e decidido, nem me importava que se sentisse ameaçado...

Imagem: Lali Spellman, https://www.facebook.com/photo/?fbid=8484622898219922&set=gm.975697093757778&idorvanity=934835267843961, em 14 Maio, 2024

Wednesday, May 08, 2024

Leonor

 



Nas aldeias, todos se conhecem e sentem em partes iguais toda a tristeza das situações inesperadas. A morte não é, de todo, uma intrusa. Ela chega sempre, não importa a hora ou o instante. Mas é ela que vem, sempre mais ou menos indesejada. Hoje não aconteceu assim. Foi alguém que se levantou, se preparou e foi à procura dela, deliberadamente. Decidiu ir embora e executou a partida. Para trás, deixou toda a gente agitada, devastada, tensa. E deixou também a aldeia cheia de estranhos: polícias, bombeiros, legistas, psicólogos. Mas que lhe interessa? Ela já não é deste mundo. Já não a incomodam as vozes dos estranhos e o ruído dos carros pelos caminhos. Ela está em paz. Está sossegada. Não lhe interessa também, já, a súbita tristeza dos que ficaram. Quem sabe, os que agora entristecem nunca lhe tenham dito nada que lhe aliviasse a tristeza a ela. É quando tudo acaba, irremediavelmente, que muitas vezes dizemos: poderia ter ajudado, poderia ter reparado. Dito uma palavra, feito um gesto... 

Só indiferença. Por todo o lado, só indiferença... 

Adeus, Leonor. Não me lembro já da tua cara, ter-te-ei visto poucas vezes, mas sei quem és. Quem eras. E até eu, esquecida que estava da tua existência, tenho a garganta apertada, custa-me respirar, no momento em que escrevo estas palavras...

Imagem: Igor Svibilsky, em https://www.facebook.com/photo/?fbid=10231332294561462&set=gm.2353474864858272&idorvanity=157947604411020, consultado em 25 Abril, 2024