Sunday, February 27, 2022

Desolação


Pelas janelas enormes, da minha cozinha, só entra escuridão e silêncio. Passa um ou outro carro e fica uma tira de som que desaparece num instante. Estou há horas para me levantar desta cadeira e ir para a cama. Mas vou ficando, porque não me apetece café, mas quero café. Então, espero mais um bocadinho e estou perto de conseguir beber café. Está quase. O dia foi correndo com normalidade. Findo o dia, apesar de só querer estar na minha cama, de olhos fechados, com o computador ligado em cima da almofada, a ouvir... coisas, apesar disso, dizia, estou tomada de uma inércia paralisante.  É assim há muito tempo, mas agora, a juntar a tudo isto, há desolação. 
Não longe, as casas de muitos desapareceram. Ou estão vazias, porque se tornaram perigosas. Muitos abrigam-se em estações de metro, em grupo. Como será o dia? Tomam banho? Mudam de roupa? Comem? Bebem café, chá, qualquer coisa quente? 
As cidades estão vazias. Recolher obrigatório. Muitos estão em abrigos subterrâneos. A minha amiga está. Um abrigo que parece um poço. Estreito. Pequeno, para duas ou três pessoas. Pelas paredes, há prateleiras cheias de conservas. O de um amigo é maior. Estão lá os vizinhos. Tudo já com muita idade e problemas de saúde. Muito sem horizontes. Muito triste...Uns velhos, perto da morte, enterrados vivos para sobreviver... 
Na minha adolescência, li todos os romances de guerra - a segunda - publicados pelas Publicações Europa-América. A Oeste Nada de Novo de Erich Maria Remarque: inesquecível. E muitos outros. Sven Hassel, e o seu personagem inesquecível, Porta. Fiquei a saber que há filmes dos seus livros e conheci outros apreciadores deste escritor. A guerra, que eu pensava que era coisa passada para sempre entre os "países civilizados", "a velha Europa": ela aí está. Joseph Porta estará algures na Ucrânia. Todas essas personagens, aliás, de Remarque, Hassel, Leon Uris estarão na terra de ninguém, confraternizando, entre o desespero e a camaradagem...   

Thursday, February 24, 2022

Natália, Nazariy

 



24 de Fevereiro de 2022


Putin, o senhor da guerra. Hoje, representa para mim tudo aquilo que o ser humano tem de pior: o seu egoísmo, o total desprezo pelos outros, a prepotência. Guerra, porque aquele fantoche quis!! 
A guerra contra o Iraque, essa guerra abjeta, foi o meu despertar para o significado da palavra guerra. Antes, eu, como vivo nos livros, pensava que era tudo ficção. E eis que acontece o ataque ao Iraque. Mas o Iraque é longe, por isso, com o meu egoísmo abjeto - porque é disso que se trata, estando eu bem, comigo ninguém se incomode - deixei ficar tudo na distância. Passou... E agora isto. Aqui perto. Aqui ao lado... 
A lamentável incapacidade do ser humano resolver os assuntos através de palavras: palavras!! Negociação, acordos. Mas os ignóbeis - todos eles - não sabem falar, não sabem argumentar, não sabem chegar a consensos, ceder, trocar. Sei lá! O mundo está cheio de deficientes cognitivos. Todos os que amuam, os que chamam nomes, os que amarram o burro, viram as costas, lançam fogo sobre os outros são impotentes cognitivos, ignorantíssimos. Puxam pela violência, porque se encontram ainda num nível muito primário de evolução. 
Aos meus amigos ucranianos, um abraço muito grande, muito apertado. E o Nazar, 18 anos, acordado às 4 da manhã, para ir para a guerra...  

Tuesday, February 22, 2022

I'm an alien

 


https://designthesign.wordpress.com/2009/10/02/art-excellence-zdzislaw-beksinski/

Thursday, February 10, 2022

«O Gume da Pevide»

 


Este foi o título da crónica de Miguel Esteves Cardoso no Público, na qual começa por informar que a sua mulher foi atacada por uma nabiça. Daí, partiu para uma constatação da forma como, à medida que envelhecemos, tudo se tornar uma potencial armadilha que nos pode vitimar. A esquina duma mesa? Uma temível arma de destruição maciça do nosso fragilizado corpo. Embatemos contra ela e eis-nos dobrados de dor e pejados de nódoas negras. Enfim: envelhecer.

Claro que, entre os comentadores, há aqueles masoquistas que não se cansam de lamentar como é possível pagar a um indivíduo para escrever coisas tão fúteis. 

Fúteis? Para chegar a um título destes - o gume da pevide - é preciso ser muito bom. Muito sabedor desta coisa das Letras e das Literaturas. É um título genial. O texto em si, por sua vez, é o típico texto à MEC: a leveza substantiva. Densa. Fútil? Essencial! Repare-se no parágrafo final:

«Sobra-nos um alvo andante, um íman de quedas, um chamariz de mazelas, uma pilha de nervos, sempre com medo que uma semente de romã nos corte o pio.»

Precisamente!

Sunday, February 06, 2022

Sombras



Perde-se muito, quando não se tem paciência para esperar. Eu esperei pelo fim deste filme, por causa da chuva. Só por causa da chuva. Da imensa chuva... Não me apetecia ver mais um filme de casas assombradas. Mas esperei e, afinal, não era um filme de casas assombradas.

Um casal - escritor, pintora - vai, numa noite de chuva intensa, a caminho da sua casa de sonho, aquela que lhes trará inspiração para trabalhar, aquela onde terão os seus filhos e o seu futuro. Estão felizes. Imensamente felizes. Eufóricos. E, nisto, surge uma mulher solitária no meio da noite e da chuva e da estrada e eles despistam-se. O carro fica atolado e eles decidem ir para casa a pé, uma vez que a distância até lá já é curta. Entretanto, não conseguem ver a mulher de branco. Aliás, só ela é que a tinha visto. E ele concluiu que foi uma visão causada pela noite e a chuva. Estava tudo bem. Ninguém se tinha magoado. Podiam correr, debaixo da água que caía sem cessar, rumo à casa deles. Seria até divertido. Quando se é feliz, tudo é divertido. 

A casa fica junto à estrada, e não há mais vivalma nos arredores. Eles vão-se instalando, abrindo caixas, arrumando coisas, improvisando refeições. Tudo é novo e lindo. Ela, porém, começa a ouvir vozes, a ver figuras aterrorizantes nas janelas, atrás das portas, e começa a ficar inquieta, triste, olheirenta, febril, sem fome, sem entusiasmo. Ele não vê nada, mas começa também a ficar abatido, a querer sair daquela casa, ao que ela se opõe. Ela não quer ir embora.  Ela quer ficar. Partir? Nunca! E explica-lhe que já viu aquelas pessoas parecidas com sombras, quando era pequena. O avô também as via e dizia-lhe que eram as sombras que o vinham buscar, porque ele ia morrer em breve. E ela afligia-se: e se eu também morrer? Se estas forem as pessoas que vêm anunciar a minha morte? E ele respondia: não. Tu não tens comido, estás cheia de febre. É a chuva, que não pára, que nos faz sentir tristes e ver o que não existe. E resolve agarrá-la ao colo, posto que ela está sem forças, e deixar a casa. Mas a rua transformou-se num rio. É impossível sair. 

E então ela está deitada no chão, molhada, de olhos abertos e vê o carro na noite em que quase atropelaram uma mulher fantasma. Vinha um outro carro na direcção deles. E depois o carro deles ficou imobilizado na estrada, quase desfeito, ele ainda dentro do carro e ela na lama sob a chuva intensa. E havia muito movimento de bombeiros, polícia e algumas pessoas que se aproximavam dela para lhe dar alento: eram as mesmas que lhe causavam medo. Veio, finalmente o padre, a figura aterrorizante que, na casa, anunciava a sua morte. Mas já não metia medo.  Pelo contrário, debruçado sobre ela, e colocando-lhe a mão no ombro, dizia-lhe: não tenhas medo, vai, chegou a tua hora. vai em paz. E ela tremia, e acenava que sim com a cabeça, tanto quanto o seu estado lhe permitia mover-se. No pescoço, um colar ortopédico, colocado pelos socorristas. Em vão. O padre rezou e fez-lhe o sinal da cruz e ela deixou de mover-se. Ele, numa maca, completamente imobilizado, seguiu para a ambulância. 

Não foi um filme de casas assombradas, foi um filme de agonia. A agonia que precede a partida, a passagem, enquanto a pessoa, confusa, ainda há pouco viva, procura adaptar-se à nova condição de morta. A condição de sombra...




 

Saturday, February 05, 2022