Wednesday, September 08, 2021

Duras Penas


 

JUIZ: levante-se o réu!

RÉU: Eu?

JUIZ: É o réu?

RÉU: Posso ser. Já que ninguém se levanta…

JUIZ: Como se declara?

RÉU: Em que sentido, meritíssimo?

JUIZ: Inocente ou culpado?

RÉU: Inocente!

ASSISTENTE: Mentira! Culpado e bem culpado. Forneceu-me todos os seus materiais de trabalho e está a fazer o trabalho que me pertence a mim e que eu não tenho nenhuma vontade de fazer. Disse! 

JUIZ: Isto é verdade, senhor réu?

RÉU: É. Eu dei-lhe tudo porque ele me pediu. 

JUIZ: Confessa, então.

RÉU: Isto confesso, mas…

ASSISTENTE: Pôs-se a ler aquilo que me cabia a mim, mas que eu não tinha vontade de ler, pondo assim a seriedade de tudo em causa. Eu até lhe disse que aquilo era tudo muito difícil e incompreensível, que ninguém conseguia compreender. Mas ele fez orelhas moucas.

RÉU: Aquilo não era difícil, o assistente é que não deve muito à inteligência. Ah! E foi ele TAMBÉM, repito, TAMBÉM que sugeriu que eu lesse. Só que quando ele viu que eu ia mesmo ler… aí começou a dizer que ninguém entendia. 

JUIZ: Que descaro! Olha como ele confessa o crime de que é acusado. Levante-se a sombra.

Sombra: Levantada e pronta, meritíssimo.

JUIZ: O que tem a dizer?

SOMBRA: Tenho a dizer que o réu é muito espaçoso, como dizem os brasileiros. Todo lampeiro e alapado na papelada, para fazer um belo relatório, digo eu, que nunca me engano.

ASSISTENTE: Precisamente. Não só ia começar a deslindar aquela maçada, como me ia obrigar a mim a mexer-me também. E a minha amada sombrinha… – com voz embargada – não adoeças, sombrinha, senão eu meto atestado.

Sombra: Oh... assistentezinho... assistentinho...

RÉU:  Mas o relatório tem só uma página.

JUIZ: Não quero diálogo e maricadas no tribunal. 

ASSISTENTE: Foi uma brincadeira. Ninguém acredita que eu ia adoecer.

RÉU: Desculpe, mas que raio está a dizer? Quem falou em doenças?

JUIZ: Caluda, meus senhores. Voltemos à vaca fria. Que mais fez?

RÉU: Quem, eu?

ASSISTENTE: Quem mais havia de ser? Sonso!

RÉU: Sonso é você!

 – Martelada forte perpetrada pelo juiz irado – 

RÉU: Aiiiii…

ASSISTENTE: Aiiiiiii

SOMBRA: Aiiiiiiiiii

 JUIZ: Aiiiiiiii

RÉU: Eu fiz tudo o que me tinha sido pedido para eu fazer. Isto é, fiz trabalho que não me pertencia. Que pelos vistos não pertencia a ninguém, aliás…

Assistente: Se você se fizesse de morto, ainda hoje estávamos no belo ripanço. 

RÉU: Mas já se tinha falado abundantemente de gastronomia e dietas…

ASSISTENTE: Esse falador de dietas e alimentos é outro abelhudo e incompetente que devia estar com os ossos no tribunal.

SOMBRA: E amigo do nosso inimigo, ainda por cima.

ASSISTENTE: O nosso inimigo que tem coisa com o Belzebu… sempre na converseta. E o réu também!

SOMBRA: Nem mais. Sempre na converseta com o nosso inimigo. Mas no outro dia rimo-nos todos do nosso inimigo. Até o réu…

RÉU: Culpado! Mas não me ri, sorri apenas.  Já o assistente até ia caindo da cadeira com a risota. Que grande brincalhão! Quem diria, tão santanário, tão simpático, tão falinhas-mansas e olha…

JUIZ: Ordem! O que fez com o inimigo?

RÉU: Nada.

ASSISTENTE: Mentira. Falou com ele, ajudou-o, cumprimentou-o, tratou-o como gente. Mesmo depois daquilo do mel… e da sua figura com um saco cheio de gelo.

SOMBRA: Ahahahahaah. Desculpe meritíssimo, mas o réu fez uma fraca figura, quando apareceu no sítio com um saco com gelo e não havia nada para congelar.

ASSISTENTE: Ahahahaahahah. Peço desculpa.

JUIZ: O réu falava com o inimigo? Como se atreve?

RÉU: mas se estamos todos no mesmo barco… somos uma tripulação.

ASSISTENTE: Até foi trabalhar para ele, o Belzebu, armado em grande intelectual. É como diz o outro, o poeta: pois se até tu tiraste o título! 

JUIZ: Não se desviem do assunto! Que título é esse?

ASSISTENTE: É o título académico.

JUIZ: Como assim?

ASSISTENTE:  Os títulos é que lhes dão a volta ao miolo. 

SOMBRA: É como eu sempre digo: sobe-lhes o título à cabeça.

JUIZ: Voltemos à vaca, ou melhor, ao boi.

RÉU: Boi?   

ASSISTENTE: Boi, sim, sempre a ruminar, sempre a ruminar.

RÉU: Mas eu só sigo ordens. Eu só cumpro metas… já que a assistente e a sombra só encanam a perna à rã, há que dizê-lo…

ASSISTENTE: Protesto, meritíssimo, também roçamos o traseiro pelas esquinas!! 

JUIZ: Peço ao réu que não insulte o assistente.

RÉU: Hein??

JUIZ: É verdade que leu toda a papelada?

RÉU: Mas nin…

JUIZ: Responda à pergunta, não tergiverse.

RÉU: Sim… ninguém mais ..

JUIZ: Cale-se!!

RÉU: LEU… leu… desculpe…leu.

JUIZ: É verdade que partilhou todos os seus materiais com o assistente e a sombra?

RÉU: Eles pediram…

- Martelada perpetrada pelo juiz irado -

RÉU: Aiiiiiiiiii… pediram…. SIM!

 ASSISTENTE: Aiiiiiiiiiiiiii desrespeito pelo tribunal…

SOMBRA: Aiiiiiiiii sempre armada em chapéu-de-sol sem

JUIZ: Aiiiiiii caluda!!!!!

SOMBRA: …varetas…. Caluda… caludinha…

JUIZ: É verdade que preparou a papinha toda para a assistente comer?

RÉU: É. Ela gosta DE COMER.

ASSISTENTE: Comer é viver!! Se não sabia, fica a saber. Mas eu não lhe pedi para me fazer a papa. 

RÉU: Pediu, sim. Pediu, sim. 

ASSISTENTE: Pedi, mas não era para você fazer… era para fazer de conta!

SOMBRA: Nem mais! Fazer de conta, seguindo o belo exemplo da nossa bela assistente, que, repito, que nunca faz nada. NADINHA! 

ASSISTENTE: Não te canses, sombrinha, olha teus pulmões…

JUIZ: Silêncio, meus senhores, silêncio. Deixem-me trabalhar! Deixem-me trabalhar!

RÉU: Faça de conta que trabalha, meritíssimo. Siga o exemplo da assistente, que nunca faz nada. NADINHA. A calaceira. 

JUIZ: Ah, então chama à assistente calaceira. Verdade?

RÉU: Verdade!

JUIZ: E você, é calaceira?

RÉU: Não, senhor juiz. Não sou!

JUIZ: Então confessa...

RÉU: Eu sou trabalhadeira… lhadora. 

JUIZ: Condenada! Fechada a audiência. Andor!

ASSISTENTE: Ganhámos, sombrinha. Deixa-me estreitar-te contra meu peito.

SOMBRA: Estreita… estreita.


imagem: https://wonderfulverse.tumblr.com/post/173926419463/zdzislaw-beksinski, em 8 de setembro, 2021


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