Thursday, August 08, 2019

A Experiência



É com algum incómodo que confirmo que não consigo ler ficção. Aquilo que me manteve à tona durante toda a minha vida, deixou  - espero que temporariamente :( - de me interessar. Penso que, depois de Gissing, deixei de ter romances que me interessem. Os policiais perderam o mistério. Já li tudo de Ruth Rendell e de Patricia Highsmith. Ninguém mais se lhes compara. Os outros policiais parecem-me forçados, ridículos ou previsíveis. Romances de amor, nunca apreciei o género. Aliás, a literatura light/chick lit é a única paraliteratura de amor - amor confluente - que consigo - ou conseguia - ler. Quanto à minhas escritora de culto, Charlotte Brontë, o que ela escrevia não é romance de amor, não é literatura sentimental, não é cor-de-rosa, não é literatura de género. A ficção de CB é uma coisa à parte. Já a querida Jane Austen, teve o mérito de ter criado o homem mais adorável de toda a literatura: Mr Darcy. Quanto à Literatura, parece-me forçada. Parece-me que os últimos romances que li - um de João Tordo - são feitos para serem literários, isto é, soam a história forçada, para parecer arte.
Mas não deixei de ler. Como adoptei as ciências forenses como passatempo, tenho lido biografias de assassinos que ficaram na história do crime, bem como ensaios sobre psicopatia - Michael Stone, Robert Hare, etc. e, até, Hernani Carvalho (!). De momento, tenho o Índice da Maldade para acabar, tenho o livro de RH para acabar, tenho o livro sobre Ed Gein para acabar e um outro, de uma mulher que matou, mas que é tão humana, tão fascinante, tão sofrida… que dá vontade de ler muito devagar, para ter um exemplo - um mau exemplo - do que é viver à beira do abismo. Podia ser uma personagem de Ruth Rendell. Mas não é. Está presa. Perpetuamente.
Como contraponto à literatura de crime, estou a ler O Demónio da Depressão - excelente - e
Sapiens: A Brief History of Humankind - Excelente ao quadrado.
Mas é o crime que me ocupa a mente. Ontem vi uma história verídica acerca de um tipo de crime que se está a banalizar, mas que teve algo de fascinante. Há muito não me surpreendia com uma história destas e Deus sabe que tenho lido e visto histórias surpreendentes.
Uma mulher bipolar casa com o homem por quem se apaixonou no liceu. As crises pareciam ter amenizado. E ela tem medicação, mas não a toma. O casamento segue o seu curso de filhos e empregos e fraldas e casas e vida a dois. Por vezes ela tem as suas crises de mudanças bruscas de humor, que acabam, as mais graves, com ela a meter-se no carro e a andar sem destino. Passada a crise, volta para casa. O marido é compreensivo. Tenta levá-la a tomar a medicação, mas ela resiste: não precisa, não é louca, está bem. Decidem, entretanto, mudar de cidade, para ela poder retomar o estudo e ele poder arranjar um emprego melhor. Numa primeira etapa, tudo corre bem. Estudo. Emprego. Casa. Ela tem mais um filho. O terceiro. Mas, subitamente, ele perde o emprego bem pago e arranja outro que apenas permite pagar as contas. Ela ressente-se. Acusa-o de ser um perdedor, a loser. E começa a refugiar-se no computador. Dia e noite. A casa está num caos: lixo e coisas sujas por todo o lado. Os filhos ao deus-dará. O marido começa a ficar farto. Com um emprego precário, uma família para alimentar, três filhos para cuidar e uma casa desorganizada, não consegue deixar de se exaltar. O ambiente familiar é opressivo. Ela, entretanto, entra em depressão profunda. Quando não está no computador, no grupo Experience, a desabafar com um outro internauta, está deitada no chão, com as mãos na cabeça. Os filhos mais velhos vão-se valendo a si próprios. O bebezinho vegeta. Gatinha sem rumo pela casa. E, um belo dia, ela mete-se no carro e desaparece. De vez. Para não mais voltar. O marido tem esperança de que seja apenas uma viagem mais longa. Mas não. É uma despedida. Perante a ausência de notícias, informa a polícia, que começa a procurá-la. A investigação é curta. Verificado o computador, localiza-se a morada do interlocutor, o confidente. Na casa deste, a polícia fala com a mulher, que não faz segredo da estranha obsessão do marido com o computador, farta que está dos temas que o fascinam. A polícia pergunta: "e que temas são esse?", " Canibalismo", diz a mulher. "Canibalismo?", "É, ele parece ter curiosidade em provar carne humana". De imediato, a polícia liga para a "esquadra", para apanhar o canibalista. E da esquadra dizem: "ele está aqui. Diz que nos vai levar ao corpo", "corpo?". Corpo.
No Experience, encontram-se pessoas com coisas para contar: a vida, as humilhações, os desesperos, os desejos obscuros, as fantasias, enfim, a realidade paralela. É neste site que a mulher bipolar diz que não gosta de viver, que a vida dela não tem sentido, que é um pesadelo, e que deseja morrer. Ser morta por asfixia e, depois, cortarem-lhe a garganta, como garantia inequívoca de morte. Já o canibal, em potência, quer apenas provar carne humana. Como têm desejos que se complementam, combinam encontrar-se num hotel. Ali, conhecem-se e combinam a hora e o sítio para proceder à consumação dos seus desejos. Vê-se a imagem de ambos, de costas, lado a lado, calmos, dirigindo-se para o interior de uma floresta, em direcção a um local isolado. As calças de ambos estão descaídas. Têm uns corpos tristes e as calças são tristes também.
É ao local isolado que o homem leva os polícias para recuperarem o corpo. Ele está como que aliviado. Os polícias, por sua vez, estão com o ar de quem pensava já ter ouvido tudo. Pergunta um deles ao canibal: "e comeu alguma coisa?". E ele, calmo, apesar de ter à espera uma pena de prisão perpétua: "não. Não consegui."







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