Wednesday, August 14, 2019

A casa interminável



Depois de longas noites de insónia e falta de sonhos, seguiram-se ontem e hoje momentos de sono e de sonhos maravilhosos. Magníficos. Grandes. Grandiosos. Indizíveis. Lindos. O de hoje já não me ocorre bem o que foi. Mas o de ontem tem andado às voltas na minha cabeça, a encher-me de prazer e de sublime.
Eu gosto de sonhar com casas e comboios. E ontem estive numa das muitas casas em que passo noites de alegria. De riso e de esquecimento. Por lá ando, de facto, esquecida, tentando não acordar. Nunca! Mas ontem aquela casa foi-se metamorfoseando. Ela, que é uma casa que eu conheço, mas da qual não sei muito, porque acabo por não entrar nela quase nunca, porque aquela terra aonde vou fazer compras, uma terra linda, de grandes prédios, tem as lojas quase sempre fechadas, pelo menos quando eu me aproximo delas e, por isso, acabo por ir para outra terra fazer compras e só vejo a casa de longe. Mas sei que tem um quarto de banho com toalhas vermelhas. Até já lá tomei banho e depois fiquei sem saber onde dormir. Mas como tenho uma outra casa onde tenho uma sala com uma cama, acabo por dormir na cama da sala dessa casa. Às vezes, a sala dessa casa tem muito bolor junto ao chão. Desagradável!
Ontem, como disse, fui a essa terra com uma amiga. Não uma amiga minha, mas amiga de uma amiga, que também não é minha amiga. Ainda assim, como os amigos são para as ocasiões, resolvi convidá-la para dormir na minha casa, porque ela não tinha transporte para casa dela e estava a chover. Dirigi-me então para a casa das toalhas vermelhas, sem saber bem onde deitaria a minha amiga. Mas, quando cheguei àquela casa, vi que ela se tinha juntado a uma outra e também à da sala com a cama onde costumo ficar. Acontece que a casa do meio ainda anda em obras. Ainda está em tosco, como se costuma dizer, embora tenha um ou outro quarto já acabado. A decoração, no entanto, é que me agonia naquela casa. É tudo muito mal combinado, muito sem gosto. Passo bastante tempo, às vezes, a distribuir almofadas por aqui e por ali, mas fica tudo forçado. É esgotante.
Bem, chegada à casa ainda em melhoramentos, deparo-me com o construtor civil e uma série de pedreiros, muito atarefados, que me dizem para ir ver a obra. E que vejo? Que já construíram um enorme quarto com uma parede envidraçada e que tem no chão, a espaços, colchões cobertos de lençóis brancos. Atiro-me logo para cima de um deles e digo à minha amiga: escolhe um para ti! Rebolo-me. Contente. Só depois vejo que a parede não tem reboco. E que para além do enorme quarto, há uma série de outras salas, pegadas umas às outras, quase prontas. Só falta pintar. "Venha ver o resto da obra!". O resto? E a casa não pára de aumentar. São quartos e quartos, terraços. Há até uma pocilga e uma mulher a guardar os porcos. "A pocilga, não", digo eu. E eles dizem que não, que a pocilga pertence à casa do lado, mas falta fazer a parede. Ah! E fico mais descansada. Entretanto, vem um outro pedreiro que, aliás, é o engenheiro e me chama para vermos o jardim. Eu fico muito apreensiva, porque o jardim está cheio de ervas daninhas e me lembro que já não tenho idade para cavar. Mas ele diz-me que há uma surpresa no final do jardim e eu penso que as ervas também são criaturas de Deus.
De facto, pela vereda estreita, começa a aparecer um fiozinho de água e depois um rio: "é seu. Faz parte da propriedade". Mas isto é um palácio! Penso. E de facto é, só falta rebocar, pintar, correr com os porcos para a casa deles e começar a apreciar ervas, estevas, giestas, espinheiros e, até, amoreiras bravas. E nisto vem um outro sujeito, com um ar muito profissional, com um berbequim na mão, que me diz: "venha ver a varanda." Varanda? mas é um rés-do-chão...
E que varanda. Está toda apainelada. Madeira dourada, com um brilho discreto e elegante. Só faltava o gradeamento à frente. Mas estava já encomendado. Quando entrei nela, para ver bem a madeira, senti-me impulsionada para a frente, a rodopiar, numa viagem a alta velocidade. Era uma varanda rolante. E grande, a perder de vista. A paisagem que a rodeava era de asfixiar (para não dizer que era de tirar o fôlego): roseirais, campos de tulipas, lagos, árvores frondosas carregadas de madressilvas. E havia também grandes clareiras com sacos de um quilo de sal e de um quilo de açúcar. E porcos. Tantos leitõezinhos cor-de-rosa e malmequeres.
Asfixiada, resfolegante, exaurida, maravilhada, com tudo, tudo, alma e corpo, subido mesmo ao pé da garganta. Feliz. É neste estado que recolho ao quarto por rebocar e me deito no colchão, coberto de branco, junto ao vulto da minha amiga - que não o é - que dorme, calma, e ressona, movimentando um fiozinho de algodão junto à boca entreaberta.

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