Monday, August 08, 2022

A Boçalidade...


« Se não usas a bandeira arco-íris és homofóbico; se celebras o dia do combate à homofobia estás a difundir a ideologia de género; se usas tranças "africanas" e és "branca" estás a fazer apropriação cultural; se não pedes desculpa pelo passado colonial és racista; se não usas pronomes neutros és transfóbico; se te identificas com outro género és uma ameaça à ordem de Deus; (...) se comes carne és um assassino; se não comes carne és um palerma

Se não usas a bandeira arco-íris és homofóbico; se celebras o dia do combate à homofobia estás a difundir a ideologia de género; se usas tranças "africanas" e és "branca" estás a fazer apropriação cultural; se não pedes desculpa pelo passado colonial és racista; se não usas pronomes neutros és transfóbico; se te identificas com outro género és uma ameaça à ordem de Deus; se achas que as alterações climáticas existem mesmo és um maluquinho do clima; se achas que essas alterações climáticas têm que ser estudadas e precisam de respostas razoáveis e equilibradas és um assassino da Terra-mãe; se não usas máscara e não desinfetas as mãos de 5 em 5 minutos és um egoísta irresponsável; se usas máscara e tomas todas as doses da vacina és um carneiro, um peão da nova ordem mundial; se achas que o excesso de escrúpulo sanitário é um atentado à Liberdade és um negacionista; se não tratas o teu cão como se fosse da família és um animal; se tratas o teu cão como se fosse da família és um animalista; se comes carne és um assassino; se não comes carne és um palerma.

O mundo livre debate-se, hoje em dia, com este tipo de problema: a divisão entre filia e fobia. Digo o mundo livre, porque o mundo não livre, aquele onde não havendo margem para estes entretenimentos auto-destruidores vai parecendo um El Dorado para muitos, não tem esse tipo de problema: pensas e fazes o que o ditador quer, ou não existes (uma outra versão do cogito).

Mas divago, falava no problema do mundo livre. Para que este problema se adense, o que também contribui é a língua (e a pena). E este, hoje, é o meu ponto: a língua - pelo menos a portuguesa - tem um problema concetual. Filosoficamente concetual. Um problema que as tribos radicais, de ambos os lados, têm usado para regar, como gasolina, a fogueira das guerras culturais.

Explico: se lhe perguntarem se gosta de Caldo de Turu, provavelmente, primeiro, perguntará o que é. Depois de lhe dizerem que se trata de um molusco de cabeça dura e corpo gelatinoso, e depois de insistirem para que responda se gosta ou se não gosta, provavelmente dirá que não gosta. Não tendo experimentado, não tem forma de saber se gosta. Não podendo afirmar que gosta, responderá que não gosta, para se referir a uma ausência de gosto.

Imagine agora que não gosta mesmo nada de caracóis. Uma vez experimentou, e a textura, o sabor e o aspeto desagradaram-lhe muito. À pergunta se gosta, responde convicto que não gosta. Mas desta feita para exprimir repúdio. Estes dois exemplos tratam de "não gostos" diferentes: um, passivo, tendencialmente neutro; outro, ativo, determinado e de repulsa.

Digo isto, porque onde existe uma escala contínua de gosto, que vai, digamos, do odeio (início da escala) ao amo (final da escala), deveria, na verdade, haver duas escalas: uma de "gosto", que fosse do não "gosto" (em que o gosto não existe) ao imenso "gosto" (em que o gosto é máximo); e outra de "não gosto", que fosse do não "não gosto" (ausência de recusa) ao imenso "não gosto" (as coisas que se odeiam, por exemplo).

Alguns dos leitores que não se perderam até aqui dirão que isto não faz sentido nenhum, e que uma escala contínua basta. Dizem isto porque partem de uma premissa equívoca: a de que as pessoas se posicionam, sobre todas as coisas, entre duas paixões arrebatadoras, entre o ódio e o amor, entre a absoluta fobia e a mais determinada filia.

Ora, esta dicotomia extremada, a ser verdadeira, tem desde logo um grande problema: obrigaria a que os moderados, os que se posicionam no meio da escala, acabassem empurrados para os extremos, forçados a tomar um partido radical sobre todas as coisas.

Mas o equívoco não se esgota aí: a generalidade das pessoas não tem posição sobre bastantes temas, e, na verdade, nem quer ter. E ainda menos quando se trata de temas tão etéreos ou distantes quanto as construções sociais de identidade ou as ancestrais culpas dos tetravós, quando não poucas vezes nem os avós conheceram.

O que, aliás, acontece, em contradição com este (fogo de) artifício, é que sobre a generalidade dos temas a generalidade das pessoas tem posições sensatas e não necessariamente lineares. Por exemplo: à pergunta se gostam de gin, muitos dirão que gostam muito se for com água tónica, mas que não gostam nada se for puro; à pergunta se são racistas, a maioria responderá que não, mas quase nenhum considerará que o Padrão dos Descobrimentos é um monumento ao racismo e que deve ser demolido; à pergunta se acha que os homossexuais devem ter menos direitos que os heterossexuais, a maioria responderá que não, mas muitos menos se sentirão impelidos a usar um saco com as cores do arco-íris, e acharão a coisa, até, um bocado pirosa.

O problema é que quer o nível polarizado em que boa parte das discussões públicas hoje se faz quer a escala contínua da fobia à filia (ou vice-versa) torna o debate impossível de se fazer, deixando apenas espaço para o combate. E esse é o terreno das tribos radicais: a redução da discussão ao preto e branco (salvo seja).

Sintetizo e simplifico: sobre as coisas da vida nem tudo se posiciona no domínio das paixões. A minha ausência de filia por algo não significa que lhe seja fóbico.

Combater os woke (e os radicais que do outro lado se lhe opõem), passe o trocadilho, exige que estejamos bastante acordados, designadamente no discurso. Antigamente perguntava-se se estaríamos dispostos a pôr a espada no lugar da pena, hoje a luta trava-se mais com a pena do que com a espada (reparem como o botão do Twitter é precisamente uma pena). Como o livro de Eclesiastes, de resto, sempre nos alertou: "Muitos caíram pelo fio da espada, porém mais foram os que caíram por causa da língua" (Ec 28,18).»

https://www.msn.com/pt-pt/noticias/ultimas/da-filia-%C3%A0-fobia-a-pena-que-as-tribos-radicais-est%C3%A3o-a-aproveitar-como-espada/ar-AA10qcwX?ocid=msedgntp&cvid=8e69d8cea2334bbab37e5a55c2f9827b 

Pena o texto acabar de forma abrupta. O tema merece mais discussão. No fundo, este extremar de posições corresponde a uma falta de Educação, com E grande, de finura de trato, de uma Grosseria, com G grande, de uma BOÇALIDADE, que se traduz num virar de costas, num corte radical com aqueles com os quais não nos identificamos. Não há a prerrogativa de manter uma relação mais distante, mais de conveniência, mais diplomática, mais de fachada, mais hipócrita, porque não dizê-lo, mas uma relação. Relação humana. Cordial. Não. A boçalidade gosta de virar as costas, de curtir ódios, raivas, gosta de fechar os olhos às suas insuficiências e ver carrascos em todo o lugar. 

Estes extremismos atávicos são a expressão de uma profunda IGNORÂNCIA a todos os níveis. Défice cognitivo e, pior, défice EMOCIONAL. 

Zdzisław Beksiński | Untitled (1970) | MutualArt 


2 comments:

julio césar said...

UAU!!! Fiquei sem fôlego com este texto! Concordo com tudo, tudinho. A meio do texto comecei a pensar, a Dra anda a estudar filosofia. A verdade é que a esquerdalhada tomou conta de tudo, sou de esquerda mas não me revejo no que se està a passar, e agora é quase tudo proibido. Fez muito bem em ir para umas termas, é do melhor que hà para a saùde fisica e espiritual. Não se afogue. Beijinho

Adélia Rocha said...

a esquerda e a direita trauliteiras são de fugir. Estive nas termas para visitar a minha mãe. Banhos? Só de mangueira e em regime de poupança de água. Beijinho.