Friday, December 21, 2018

Entroncamento


Eu devo ser das poucas pessoas que gosta do Entroncamento. E serei talvez a única que está obcecada com o Entroncamento. Haverá alguém que quando se deita e fecha os olhos repete vezes sem conta: quero ir ao Entroncamento? Neste aspecto, creio poder dizer que sou a única. A não ser, gostaria de conhecer essas outras pessoas que fazem o mesmo, para formarmos um grupo e discutirmos o nosso amor pelo Entroncamento.
Na viagem de comboio - também costumo dizer, na cama, com os olhos fechados, "quero ir de comboio para o Entroncamento" - , que fiz para Tomar, no Domingo passado, fiquei uma hora inteirinha na estação do Entroncamento.
Já estava escuro e, durante essa hora, no escuro, pude descansar, comer um bolo, devidamente isolada, e tirar fotografias. Tive, pela primeira vez, a possibilidade de olhar bem em redor, para tentar perceber porque é que o Entroncamento dos meus sonhos é como é. Tentar perceber em que pormenor, pormaior, me terei focado, durante as muitas horas que passei nesta estação, durante muitos anos, para construir a estação gloriosa dos meus sonhos, enorme, com comboios enormes, também, e comigo a correr, atravessando linhas - embora houvesse apenas uma - para não perder o comboio altíssimo. É que nem a plataforma, em que eu, cheia de bagagem pesadíssima, corro, feliz por ver o comboio chegar, mas também ansiosa porque o comboio está cheio e eu temo não ter lugar, se parece com a plataforma em que me encontro, com uma malinha com rodas, na realidade fria da noite. É só o nome: estação do Entroncamento. É quanto basta para ver tudo: a noite, a correria, o barulho de água por perto, talvez mar, o barzinho com cheiro a café e bolas de Berlim, o vulto do comboio a chegar, com grande barulho de metais deslizantes,  a minha bagagem imensa, que permanentemente me angustia, a minha vontade de espreitar pela porta, para ver a cidade, que imagino lindíssima. E é, era. Só a vi uma vez: chão de pedras castanhas, casas rústicas, de pedra castanha, janelas pequeninas com cortinas transparentes, mas escurecidas pela cinza das fogueiras que fazem o ar opressor e cinzento. Mas depois, por entre o cinza do ar e o castanho de todas as pequenas construções com cortinas tristes e luz amarela e baça, ouve-se um barulho de redemoinhos de água, e vê-se um mar verde cristalino a espalhar-se pela cidade, deixando para trás um brilho de cristal e espuma.  
É este o Entroncamento a que quero ir todas as noites. É por isso que, de olhos fechados, peço: quero ir para o Entroncamento de comboio, quero, quero...    

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