Wednesday, September 27, 2023

Burocratas

 


Os burocratas são gente que não se recomenda. É gente que privilegia a forma e não liga para o conteúdo. Desde que esteja tudo em grelhas, em tabelas, em gráficos e devidamente exarado em actas, relatórios e outras narrativas afins, tudo coisas que se possam mostrar a quem é pago para inspeccionar toda esta inesgotável papelada, não há nada a dizer. É gente que sempre adormeceu a ler as últimas do Diário da República e acorda para voltar a fuçar no referido Diário. Aliás, suponho que é gente que desgosta desta nova versão digital do já mencionado hebdomadário, posto que gostava de encavalitar o dito na mesinha de cabeceira, a cobrir-se de pó. Mas estamos nesta admirável era da Internet, fonte inesgotável de plataformas e outros sítios plenos de conteúdos vários de leitura obrigatória, pelo que, dado o manancial de dores de cabeça que vem da inefável rede, o burocrata, que é imune a cefaleias, tem muito para se locupletar. 

Não se pense que todos os burocratas são iguais. Há os ciberburocratas, sempre à cata de novidades na net, para embasbacarem a restante cristandade. São uma casta sublime. Assim que encontram uma forma diferente, de preferência mais morosa e mais atreita a erro, para fazer aquilo que já se fazia com uma certa calma, ficam eufóricos. Há que reunir, para informar e formar os restantes para as agruras da novidade, o que lhe dá direito, também, a pôr a descoberta no relatório anual de autoavaliação. É um dois em um. Dois? Três ou quatro. Hoje em dia, o que importa é complicar! Depois há o burocrata assustado, aquele que o é por necessidade, já que toda a gente que é gente o é também. Este burocrata anda sempre com um ar compungido e uma arritmia latente, posto que pensa que se esqueceu, certamente, de qualquer papel. Pior: daquele papel que era absolutamente indispensável. Daí a arritmia. Há depois o burocrata absolutista simples e o burocrata absolutista complicado. O primeiro tem características de todos os outros, mas muito mais satisfação. Quem lhe tira a oportunidade de fazer um PowerPoint ou de inserir dados numa plataforma, tira-lhe tudo. E os workshops? Tão úteis! E as formações? E as folhas de Excel? Maravilha! 

Quanto ao Burocrata absolutista complicado, é que a asna torce a parte traseira. Desde logo, almeja tornar-se no sumo burocrata. Aliás, há quem já tenha sido sumo e tenha regressado à base com bilhete só de ida, passando a vida a tentar encontrar o bilhete de volta. Mas não volta, porque a cristandade, escarmentada, tudo faz para o manter apeado. Torna-se então na pior espécie de burocrata: o ressabiado! Que faz o ressabiado? Protesta por tudo e por nada. Nada está bem e, se estiver, podia estar ainda melhor, se tivesse sido feito sob o seu olhar orientador. Ele é que sabe! Ele é que conhece a legislação. A ele ninguém lhe faz do alto da cabeça mesa de restaurante. É o tipo de pessoa que quer ficar na História e se não fica pelos seus feitos, fica pelas suas desfeitas. É que ele está sempre a desfazer no trabalho dos outros. É um pespego. Um fazedor de grandes tempestades em pequenos e médios copos de água. 

Consta, eu não sei de nada, pois não sou pessoa que coscuvilha, que um dia destes um daqueles burocratas saiu em grande estilo, deixando atrás de si o caos: aliás, a época de reuniões já teve início. Imagino a satisfação que ele sentiu. Imagino-o a dizer para os seus botões, únicos interlocutores atentos dos seus dislates, sabido que é que os botões não têm ouvidos (e ainda bem!): «Anda que vão ver como elas lhes mordem. Agora que eu já me safei - e bem - eles que façam as coisas como deve ser, para ver se aprendem. Ainda se hão-de lembrar de mim!»

Olhe que não. Ninguém se vai lembrar de si. Muito menos ter saudades dos seus rompantes de sabichão. Quem ainda tinha algum respeito por si, perdeu-o. Quem o achava, apesar de tudo, pertinente, acha-o agora impertinente. Leia-se: sem pertinência, fútil, só porque sim. 

Fico por aqui, para não falar dos "queixinhas", categoria ainda mais nociva, especialmente quando se junta o burocrata ao queixinhas. A queixa, essa instituição com barbas, em Portugal.  

Imagem: https://www.deviantart.com/eolmedillo/art/The-Dark-Art-Of-Zdsislaw-Beksinski-Part-12-952605657, consultado em 27 de setembro, 2023

1 comment:

julio césar said...

Os queixinhas são os piores, sempre a denùnciar utilizando a queixa para disfarçar. Muito amiguinhos e sorridentes mas mais amigos da queixa, em forma de denùncia, de qua esperam tirar beneficios. São horriveis sim. Estão sempre prontos para bloquear a fluìdez da vida e encontrar impedimentos que nos possam esfregar na cara. Ou é proibido, ou falta isto ou aquilo, ou não fez como os outros ou... o caralho. São muito lentos, julgam-se espertos e atrasam a vida das pessoas, o que, aliàs, lhes dà um prazer enorme. A tecnologia, que deveria ser causa de facilidade, nas mãos destas pessoas torna-se um pesadelo, para mim. Com gente desta, até dar um peido é dificil,,,ou perigoso porque, provàvelmente, a palavra passe estava errada e o senhor acedeu ao peido ilegitimamente e por isso vai ter que responder em tribunal.
Acho o seu texto de qualidade superior e tenho muito orgulho de a conhecer. Um beijo.