Saturday, March 18, 2023

A alegria dos outros


                           

A senhora está esfusiante. Passeou, viu, contactou. Recebeu muitos telefonemas. Eu tento contribuir para o espírito da coisa. Mas não estou num dia bom para fingir. Não por falta de prática. O meu estado normal consiste em fingir, omitir ou inventar. Também minto não raras vezes... 
Mas a senhora também não facilita. Já deveria ter compreendido que falar da alegria de A e de B só contribui para que eu me sinta uma intrusa. Todos tão unidos! Tão lindo. Sublime, até! Mas eu podia ser poupada às histórias da alegria alheia. Eu já tive um papel naquele grupo. Tinha uma função. Uma utilidade. Mas fui-me tornando irrelevante. Fui sendo um incómodo. Um estorvo. Alguém que irrita por isto e por aquilo. Um bode expiatório também... Alguém desagradável que há que ignorar, esquecer, deixar no meu canto. 
Todos tão amigos. Esquecidas as violências passadas. As humilhações, o desamparo, o abandono. Acabou o que teve que acabar, mas, como pessoas civilizadas, mantêm-se laços. Eu é que não há civilização que me salve. Tornei-me demasiado insuportável. 
A coisa vai funcionando em círculos. Tão unidos que já fomos. Não tínhamos outro remédio. O grupo da praia da claridade: será que ainda estão todos vivos? Não que alguém se interesse. Depois o outro grupo. Depois eu, atrelada, como sempre, pelo dever...
Lá tive que mudar de assunto. Para variar. Será que o bolo - «tão bom!» - tinha uma vela?  Será que cantaram em coro? De qualquer modo, eu não poderia estar nesses festejos. Por todas as razões. Há muitos anos que não posso participar de quaisquer festejos. Ainda bem... Não que alguém me queira convidar, claro!

https://www.artmajeur.com/soniademangel/es/artworks/4824742/soledad, consultado em 23 de Janeiro, 2023

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