Friday, October 26, 2018

Os Beijos Dos Avós










Estalou uma polémica (?) algo grotesca em torno de umas declarações/teorias sobre educação e violência sobre o corpo da autoria ou coautoria, sei lá, de um professor doutor universitário.
Alertada para a vetusta polémica, procurei o vídeo no YouTube e vi o que passo a descrever: um jovem, ou talvez não muito jovem, pelos vistos um intelectual, ou talvez não, também, enfim, um ser do sexo/género masculino no Prós e Contras - sobre o me too -, levanta-se, muito lampeiro, e diz que obrigar as crianças a dar um beijo ao "avozinho" ou à "avozinha" é uma violência, etc. . A moderadora diz-lhe, e bem, que não percebeu. E o dito intelectual, que até cita Foucault, reitera, mais lampeiro ainda, que o beijo aos avós é uma violência e que mais tarde os jovens andam a espreitar, se não me engano, os telemóveis uns dos outros. Pior, numa turma dele, de 40 alunos, todos dizem que os homens só violam porque não se conseguem controlar!  Vejamos o raciocínio:

Fases da vida: infância; adolescência; idade mais ou menos adulta.
Comportamentos desviantes e atentatórios sobre o corpo, segundo as fases da vida: infância/beijos nos avós; adolescência/devassa aos telemóveis; pós-adolescência/violações potenciais por falta de controlo.

Daquilo que ouvi do douto professor, nada se aproveita. Pessoalmente, ao contrário de muitos que viram  nas declarações, entre muitas outras coisas, um ataque à família e aos valores tradicionais, vi foi um ataque à lógica, à instituição universitária e à seriedade das chamadas ciências sociais. Estas parece que, cada vez mais, se preocupam com questiúnculas que as expõem ao ridículo e ao descrédito. Mais: a atitude (lampeira) com que o prof. iniciou a sua deriva lunática deixou bem claro que ele está habituado - e gosta - a proferir enormidades para deixar as plateias boquiabertas. Uma espécie de rebelde sem causa - e sem efeito propriamente dito. O tom, a forma como pronunciou as palavras avozinho e avozinha - note-se o diminutivo -, foi de provocação, mas uma provocação que espera aplauso e embasbacamento. Enganou-se. Tirando defesas pontuais, como a de Manuela Moura Guedes, e outras que pelos vistos são de amigos, caiu-lhe em cima uma caterva de insultos à boa velha maneira da Internet: o costume. Houve também quem, não concordando com as declarações, se mostrou incomodado com a devassa aos hábitos do professor e da sua orientação sexual e, também, com a qualidade rasca dos insultos. Eu confesso que não tive pena nenhuma! E porquê?

Detesto beijos! Detesto! Quando pequenina, a minha mãe diz que eu pedia para ela me lavar a cara quando vinha da aldeia, depois de ter sido beijada por toda a parentela (que Deus a tenha! Obrigada pelos beijos que me deram). Não gosto de cumprimentos de espécie nenhuma. Os apertos-de-mão são autênticos pesadelos. Para mim, as palavras bastam. Mas claro, apesar de me manter sozinha todo o tempo que posso, assim que estou com os outros não tenho outro remédio que não seja aguentar-lhes os beijos. Mas eu compreendo que cumprimentar é uma forma de dizer: somos amigos; estamos juntos; és bem-vinda; és das nossas. Não vejo o gesto como um abuso sobre o meu corpo. Afinal, os beijos de circunstância vêm da parte de pessoas que gostam mesmo de mim, ou que querem mostrar que eu sou bem-vinda. No consultório dentário,  por exemplo, sou beijada desde que entro até que saio: a assistente, a dentista, o dentista. Penso que a vontade que têm em beijar-me será muito parecida à minha própria vontade. Mas é um gesto de inclusão, de me pôr à vontade. Não é uma violência. Violência são os modos circunspectos  do meu oftalmologista: mas eu gosto dele! Ou seja, ninguém gosta menos de beijos que eu, mas, quando vindos das pessoas que conhecemos e com quem convivemos, são gestos de amizade, de entrega, de pertença. A propósito, esta semana, uma colega, como forma de se desculpar por algo que me fez, vem direita a mim e diz-me: Delinha, eu sei que não gosta de beijos, mas vou dar-lhe um beijinho na mesma e pedir-lhe desculpa. E a coisa foi ultrapassada. Mas não vou deter-me mais em beijos. Vou para a questão da família e dos avós.

Nada me poderia interessar menos do que a desagregação da família "tradicional" (de que tradição falamos?) e seus "valores". A família é como o pai Natal: só existe quando somos pequeninos. Claro que há famílias e famílias. Quando cheguei à idade da razão, dei-me conta de que a minha família, mais do que ser uma "família", tentava comportar-se como tal. Andava tudo fartíssimo de se aturar, mas tentando manter a ilusão de família: uns esforçavam-se mais do que outros, claro! Agora, nem se dão ao trabalho de fingir. Cada um na sua. Os valores da "interajuda", do apoio, do "nos maus momentos é que se conhecem os amigos", não são recíprocos. A ingratidão, o cuspir no prato em que se comeu, esses sim, são os "valores" que predominam. Felizmente não construí uma família. Mas pertenço a uma família: hélas!  A caminho dos sessenta anos, dou-me conta de que pus, no centro da minha vida,  os outros, não eu. Coloquei-me sempre em segundo lugar. Ajudei, como pude, quem necessitava da minha ajuda. Porém, quando eu precisei e pedi ajuda, só veio o nada. O nada não. Minto. Veio a indiferença e até o desprezo. Olhando para trás, vejo inclusive como a própria linguagem foi mudando: a escolha das palavras. À medida que se vislumbrava uma luz ao fundo do túnel, sendo eu cada vez mais dispensável, a atitude foi mudando. Assim que deixei de ser útil, só o silêncio. Mas não um silêncio qualquer. Não. Um silêncio enfadado. Uma raiva. Um ódio, até, que eu sinto ser alimentado. Intensificado. Do que dei, do que de bom fiz, de tudo, ficou apenas o incómodo… o "que maçada ter precisado desta fulana"...

E os avós. Conheci apenas as minhas avós. Delas tive tudo. Elas deram-me coisas. Deram-me beijos. Deram-me carinho. Foram as pessoas que mais gostaram de mim. A minha avó Maria, pouco dada a subtilezas, uma mulher da aldeia, inteligente, ativa, algo rude, mas cheia de alegria, apesar de todo o sofrimento - os filhos cegos, o marido… -, era afectuosa. Passei com ela muitas noites de riso. Muitos serões à lareira, a ouvir histórias. Quanto à avó Soledade, pequenina, frágil, mas muito ativa, muito sofredora também, foi a pessoa mais meiguinha que conheci em toda a minha vida. Vivi com ela muito tempo e em circunstâncias muito particulares. Ela deixou "coisas" para trás, para estar comigo. Ela, naquela altura das nossas vidas, pôs-me a mim no centro da vida dela. Pôs-se em segundo lugar para eu estar bem, para me proteger. Foi a única pessoa a pôr-me em primeiro lugar. Também tenho uma tia que me ajudou. Mas a conversa é sobre avós.
E é talvez porque as pessoas que eu acredito que gostaram de mim, verdadeiramente, foram as minhas avós, que eu não posso deixar de abominar a conversa insana daquele professor que, com as suas palavras e a sua falta de lógica, se atreveu a falar com desdém das pessoas que eu mais admiro: os avós. Delas, das minhas avós, os beijos são como no livro de não sei quem, que interessa?, que dizia, quando o seu amor o beijava: está a cobrir-me de mimosas… estou inundada de mimosas…




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