Thursday, September 04, 2025

O Regresso Às Jaulas

 


Sábado. Começa a cair a noite. É hora de eu começar a viver.

Ontem tive um pesadelo. Estava num sítio terrível: uma sala com janelas grandes, vidros sujos, estores assimétricos, muitas cadeiras e mesas com coisas escritas. Havia também papéis escritos nas paredes. Muitos papéis. E computadores: velhos! Cheirava a poeira antiga e cheirava também a sujidade acre. Eu entrei na sala e já lá estava gente. Uma gente grotesca e sem dentes. Uma tinha uns grandes cornos e uns óculos cor-de-laranja. Outra tinha uma cara muito comprida, cerca de um metro e meio. Ou até mais. Mas o nariz era pequeno, pelo menos naquela cara grande de queixo imenso. Havia também uma com três olhos. Não! Quatro. E tinha uns óculos para os quatro olhos. Mas não tinha boca. Tinha um rosto que era um excesso de olhos: mudo. Uma era apenas uma poça de gordura com um olho perdido na imensidão mole e oscilante. Uma ria muito, muito, muito, e abanava os braços. A outra estava tão quieta, que parecia morta. Havia também um homem: sentado e absorto dedilhando os testículos. A que estava sentada ao meu lado tinha um rosto hediondo e indecifrável e um hálito apodrecido: como se tivesse um cadáver debaixo da língua. Eu tentava sair daquela sala, tentava falar, gesticular, pedir socorro. Cheguei a dizer, com esperança que me expulsassem: “odeio-vos”, “detesto-vos”. Espetei uma unha na testa da da cara a perder de vista. Nada. Disse à do hálito fétido: “metes-me nojo!” Nada. A dos quatro olhos, tinha dois cravados nos testículos do homem. Os outros dois dormiam. A que estava quieta caiu no chão. Estava morta. Mesmo. A dos cornos levantou-se e pisou-me de forma horrenda: fazendo saltar os seus dois pés sobre os meus. Abri a boca, mas não gritei. O tempo tinha acabado, deixando o som do meu grito fora do meu pesadelo.

Era aqui que eu devia ter acordado. Era aqui que eu devia ter aberto os olhos e visto a normalidade habitual: expectável. Era aqui que eu devia ter saído definitivamente daquele sítio mal frequentado. Mas não. Era dia. Era verdade. Aquela gente é a gente que eu conheço. Tal e qual. O habitual. O como sempre. Eu estava /estou aqui mesmo. É este o cheiro quotidiano de todos os dias. A gente grotesca = normal. Tudo. Desde o excesso de olhos ao excesso de cara. Desde o excesso de fealdade ao excesso de muita fealdade. E a burrice? A burrice está mesmo aqui ao lado. Lambendo os beiços. Bebendo café.

Ninguém vai sair desta sala horrenda. Estamos habituados uns aos outros. Somos espectadores uns dos outros. Ninguém prescinde de ninguém. Daqui a nada, uma jumenta, quadrúpede mesmo, vai dizer: “Podemos começar?” E começamos a falar. A empestar o espaço com palavras. Quando o expediente terminar, vamos sair do sítio medonho, com a certeza que no mundo há alguém que não nos suporta. Não nos respeita. Que nos humilha. Que nos ouve, só para mostrar que não nos ouve. Que nos arrancará os olhos as vezes que forem necessárias. E nos arrancará cabelos e, pior, nos encherá de perdigotos. Alguém que não hesitará em atacar-nos as canelas ou até a barriga das pernas. Alguém que terá prazer em morder-nos a ponta do nariz e em espetar-nos uma faca metafórica (e não só) nas costas (ou noutro sítio qualquer). Alguém que, quando ri, é para rir de nós. Alguém que nos quer encher a barriga de nomes. Podemos contar sempre com esse alguém. Esse alguém e outros alguéns, companheiros dedicados de gigantescas orgias de ódio. As personagens fixas dos meus pesadelos quotidianos: dia após dia lá estão, sempre, infatigáveis e um nadinha mais velhos e mais flácidos e mais repulsivos: medonhos!

PS: Este ano juntou-se à comunidade um jumento obeso, muito dado à electricidade estática no traseiro, quando em contacto com cadeiras de plástico. É um pirilampo gigante, embora seja minúsculo, especialmente na área da cabeça. Pior: é viciado em confidencialidade. Olha quem! Mais viciado que ele só o Correio da Manhã. Pobre jerico!

«Ande junte-se aqui, puxe da cadeira, sente-se, para ver como lhe tratamos da confidencialidade e do resto…». 

https://web.facebook.com/photo/?fbid=444119281884237&set=gm.7865982576817042&idorvanity=350579061690802, consultado em 23 de Julho, 2024 

2 comments:

julio césar said...

AHAHHAH, eu ainda não tinha acabado de ler a segunda linha e jà estava a pensar que aqueles eram os seus colegas, a Dra confirmou mais à frente. Não sei se conhece o Dr Guido, médico forense {psiquiatra) brasileiro, ele diz que o mundo està cheio de psicopatas (ele prefere o termo CONDUTOPATAS -patologia da conduta ou na conduta). Ele refere politicos, empesàrios, etc etc etc e, também, colegas de trabalho entre outros. Ele està certissimo e até digo mais, é dificil hoje em dia encontrar alguém que não seja condutopata. Sociedade doente.

Adélia Rocha said...

Concordo. Ninguém se suporta, nem sequer finge...