Acordei
arrelampada. Estava a tentar falar com o chefe da estação de caminho de ferro.
Aliás, levei metade da noite a tentar contactar o chefe da estação. A outra
metade foi passada a correr atrás da funcionária da estação, aos berros, dizendo-lhe:
«Quero o livro de reclamações!» E ela, que não tinha o livro. E eu: «o livro,
já! Quero o livro!» Já me faltava a voz. E à funcionária estava a faltar o ar,
com medo. De mim! «Quero o livro de reclamações!!». Ela, com ar esgazeado, saiu
então do cubículo, onde a minha bagagem jazia aberta e retida, posto que a
funcionária não me autorizava a seguir viagem, sem eu arrumar todos os meus
pertences devidamente. Teve, pois, a dita cuja, a lata de censurar a forma como
emalei a minha trouxa. Saiu do cubículo, dizia eu, calada como um rato, porque
já não aguentava a minha berraria: «o livro! Quero o livro! O livro de
reclamações!» E, como ela saiu, eu saí também, da zona do cubículo, atrás dela,
que, ao pressentir-me, desatou em grande correria por um caminho agreste. De
noite, claro. É sempre de noite que as aventuras acontecem. Paisagem estranha.
Caminhos estreitos. Vegetação cinzenta e com muitos espinhos. E a funcionária a
correr à minha frente e eu, furibunda, atrás dela: «o livro! O livro de reclamações!
O livro! O livro!» Nisto, a fulana caiu. E eu contente. Fui por cima dela – não
confundir com em cima dela – e berrei-lhe diretamente no ouvido que não estava
esborrachado no chão de arbustos cinzentos: «o livro! O livro!» Mas como a
funcionária da estação de caminho-de-ferro parecia ter gostado da cama onde se
estatelou, depois de um senhor tropeção num arbusto cinzento, visto que não
dava mostra de se querer erguer do chão, vi que tinha de mudar de estratégia e
de berro: «o chefe da estação! O chefe! Onde está o chefe da estação?» E
dirigi-me para a estação. Luz amarelada. Bar. Resmas e resmas de prateleiras
com rebuçados e bolos e revistas. Bancos onde ninguém estava sentado. Vazios.
Uma gentinha miúda, quase invisível, a rodopiar expectante. E uma série de
portas. Fechadas. A bilheteira. O caminho-de-ferro. As linhas de aço. Nenhum
comboio. Numa porta estava escrito: chefe da estação. Fiquei em pulgas: «onde
está o chefe? Senhor chefe! O chefe, se faz favor!» Abriu-se a porta, devido ao
meu alarido, e começaram a sair dela vários chefes. Todos vestidos de amarelo.
«Senhor chefe?» Que não. O chefe da estação estava no primeiro andar.
Dirigi-me, então, para o primeiro andar, mas não havia escadas em parte
nenhuma. Foi quando vi um ajuntamento à espera de ser ejectado para o primeiro
andar, através de um conjunto de molas gigantes, onde tinha de se equilibrar.
Mais estranho ainda: estavam todos de calção. Pesadelo. Isto não podia estar a
acontecer. Eu não quero ser ejectada por uma mola para o primeiro andar. Mas
não havia outra maneira. Nisto, vejo uma cara conhecida. Estava na bicha para o
primeiro andar. Diz-me ela: «vamos vestir os calções.» E eu: «mas isto é
aviltante, não estou depilada.» E foi quando reparei que as molas ejectoras não
estavam fixas. Tínhamos que nos equilibrar sobre elas, fazer balanço e esperar
cair num sítio mole. Mais: tínhamos também que, primeiro, montar as molas, que
jaziam em destroços metálicos, depois de cada carrada de gente ter sido
arremessada para o primeiro andar. E pensei: vou antes chagar a funcionária da
estação, que ainda deve estar esparramada na paisagem. E logo me saiu um berro:
«o livro!» E a cara conhecida: «qual? Onde?» E eu: «não ligues, vamos montar as
molas.» E eis que se ouve um baque enorme, com ranger de ossos, ais, uis e um
enorme som de oco, causado por aqueles que tiveram o azar de aterrar de cabeça,
no primeiro andar. Pus-me logo em retirada, a andar de costas, para não
suscitar questões à cara conhecida, que se afadigava a ajeitar as molas, mortinha
por se fazer ejectar. Sempre de arrecuas, quando cheguei à porta do bar da
estação, voltei-me, finalmente, para andar de frente, e acelerei o passo. Tudo
vazio. Ou não. Vi uma sombra a esgueirar-se veloz, para a zona de embarque, com
a pressa de quem quer fugir para a frente, sempre para a frente e deixar o
passado para trás. Numa mesa, poisava uma chávena de café preto, cheia, com o
fumo a pairar de forma ténue. «Anda vai, sombra dum raio!» Eu estava berrante,
frenética, revoltada. Eu queria sangue: o da funcionária. Eu queria mais
sangue: o do chefe da estação refastelado no primeiro andar. E mais ainda: o
sangue da mola ejectora e trapalhona. Sangue! E saí da estação de comboios.
Lembrei-me então
da minha mala. A minha querida malinha, com os meus haveres caoticamente
colocados nela. «A minha mala…» Murmurei. «A mala...», tornei a murmurar. E corri,
corri, com as mãos na cabeça, desvairada, na direção do cubículo. Em vão. Tudo
era um deserto. Não havia rasto de estação, de cubículo, de mola, de cara conhecida,
de sombra, de funcionária, de chávena de café preto, de primeiro andar. Nem da
minha malinha. Nem dos meus haveres. Só restava eu na noite, na paisagem
cinzenta.
2 comments:
Rsrsrs. A mola gigante e todos vestidos de amarelo, calções não porque não fiz a depilação ahahah. Bravo
ihihihih
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