Quando entrei na igreja, o corpo
da minha avó estava rodeado de estranhos. Na primeira fila, junto ao caixão,
perfilava-se a família possível: a nora (minha mãe), o irmão dela (meu tio), o
filho deste e a sua mulher (os meu primos espanhóis). Depois, claro,
encontrava-se toda a aldeia, pelo menos aquela que ainda tem mobilidade
suficiente para não faltar a um único encontro marcado pelo senhor Padre.
Assim, quando eu entrei, entrou a única pessoa da família: a neta (eu). Passado
um pouco, entrou a restante família verdadeira: a filha, o neto e o bem-amado
(neto dela e primo – iac- meu), com os respectivos cônjuges. Entraram a medo e
ficaram junto à porta, quietos, como se estivessem a mais, e estavam. Soube
mais tarde que a boa da aldeia – os aldeões, portanto – queriam “incorrer à
bordoada” os ingratos “que abandonaram a mãe e avó” e “não têm respeito pelos
velhinhos”! E por que razão não foram eles corridos à pedrada? Porque eu
resolvi aproximar-me da minha tia (a filha ingrata) e abraçá-la, porque sim e
porque, apesar de tudo (incluindo o não me ter falado quando me viu e o ter-me
desligado o telefone “na cara”, quando lhe dei a notícia da morte da mãe dela,
minha avó), e porque, dizia eu, antes de me ter interrompido, tinha e continuo
a ter uma dívida de gratidão para com ela: acolheu-me em sua casa para eu fazer
o liceu e a universidade. (Obrigada, tia, mais uma vez. Sem essa ajuda, eu
seria ainda menos feliz.) A minha mãe, sacrificada pela morte do meu pai, que
foi morrendo aos poucos, como é próprio da doença que o vitimou, e que conjuntamente
tratou da sogra (a avó morta no caixão), que foi morrendo ao ritmo surreal de
uma demência senil, a minha mãe, dizia, pontificava aos comandos do funeral,
como se fosse uma personagem de tragédia grega: a nora sofredora e abnegada que
tratou de toda a gente moribunda que habitava a casa, até que esta ficou
finalmente vazia: a morte esvazia as casas.
Eu tinha chegado à aldeia (a
terra), depois das aulas da manhã. Estava frio e eu, agasalhada no casaco de
pele Serra da Estrela (carneira, o casaco, não a serra), parecia um urso polar.
Por mais que queira impressionar os aldeões, com a minha elegância de pessoa
com um curso superior de craveira universitária, acabo sempre por chegar à
terra ou em época de grande frio ou de grande calor e, basicamente, sem
qualquer paciência para saltos altos: a elegância não coexiste com saltos
baixos, como é sabido. A minha mãe tinha-se esquecido de deixar a chave debaixo
do vaso, como combinado, e eu tive que ir do táxi, após 95 km de viagem,
directamente para o funeral. Estava, pois, aborrecidíssima e cansada. Tinha
também ficado combinado que eu não iria à igreja, ficaria logo no cemitério.
Mas, dada a chegada inesperada dos ingratos – se não tinham querido saber da
mãe/avó quando estava viva e doente, porque viriam agora que ela já estava
morta? –, incluindo o bem-amado (o neto preferido, o mais novo), depois de
trocar umas palavras com um sujeito desconhecido e barbudo, que afinal se
revelou ser o meu primo (o mais velho, mas muito amado também), logo conhecido,
à excepção das barbas, que eu nunca tinha visto mais gordas, decidi ir para a
igreja dar a novidade: pxiuuuuuuuuuuuuuuu, calma, ELES vieram!!! Isto mesmo
segredei ao ouvido da minha mãe, perfilada ao lado do caixão, como referido
anteriormente. Eles quem? Perguntou a minha mãe incrédula, mas careca de saber
de quem se tratava. ELES! Repeti. Ah! E a notícia foi seguindo em cadeia, de
boca em boca. Depois, fomos em procissão para o cemitério. Eu parecia um
pêndulo: para cá e para lá! A minha mãe e a restante família postiça da minha
avó foram junto a ela no carro funerário. Nós, a família verdadeira, seguimos
no final do cortejo. O meu primo barbudo deu-me boleia. O outro, o bem-amado,
ingratíssimo, irritante e, pelos vistos, mudo, não abriu a boca uma única vez.
Estava maçado: muito maçado, aliás, agarrado à mãe dele, como que adivinhando a
probabilidade de tareia, a julgar pela hostilidade mal contida no semblante dos
aldeões. O que eu me teria divertido, apesar de tudo: J! Bem feita! Mas nada aconteceu,
excepto o seguinte episódio caricato que passo a narrar. Como se sabe, os
familiares mais chegados querem, quando chega o momento, ser eles a levar o
caixão que transporta o ente querido para a sua última morada. Não era o caso.
A avó demente há muito tinha deixado de ser querida: era um estorvo! O mais
chegado e mais amado dos netos, o mudo carrancudíssimo, talvez por nervos –
claro! – ou apenas por ser malcriado e ingratíssimo, nem pestanejou quando os
agentes funerários – que eram poucos – perguntaram (incrédulos): quem ajuda a
carregar o caixão? (Desculpem que faça aqui uma pausa, pois tenho os olhos
cheios de lágrimas, de tanto rir.) Agora a sério: quem ajuda, perguntavam os
ditos agentes. Eu cheguei-me logo à frente e agarrei uma das pegas – os caixões
são pesadíssimos! – e preparava-me para chamar o meu primo espanhol, que estava
junto à cova ao pé da minha mãe, quando aparece o barbudo (primo) para a pega
restante. Porém, como tinha chovido imenso e havia lama em abundância nas
imediações da sepultura, o barbudo parou, para largar o caixão, pois não queria
enlamear os sapatos. (Outra pausa, que não acerto nas teclas com a risota.) Lá
vem então o meu primo espanhol substituí-lo e fomos nós os dois com os atónitos
agentes funerários que levámos o caixão até à cova. Querem que se abra a tampa
(do caixão)? Pergunta a minha mãe, estóica, querendo demonstrar que tratou do
funeral da sogra, como se esta fosse sua mãe e para esfregar o facto (força,
mãe, estiveste bem!) no focinho da restante família. Não! Diz o barbudo, que
foi o único que falou com a minha mãe, de forma normal, como seria de esperar,
posto que se não tivesse sido ela, seriam eles a colecionar estórias da minha
avó demente, de como ela se viciou em enfiar objectos no nariz, incluindo ossos
de galinha…por exemplo. E pronto: acabou o enterro. O meu tio (marido da minha
tia ingrata) deu uma palavrinha de conforto à minha mãe, a medo, como se fosse
apanhar sova, não dos aldeões mas da respectiva mulher, pouco contente, se
calhar, por ter tirado das costas o fardo de ajudar a própria mãe na velhice,
mãe essa que sempre a ajudou a ela, claro! Nada de novo, pois: é a vida.
Finda a função, como referido,
cada um retornou às suas casas: os outros foram para a terra deles à beira mar.
Eu e a restante família postiça da minha avó (morta e enterrada) fomos para casa da minha mãe. Posteriormente,
a minha mãe ficaria sozinha na casa vazia, o irmão e sobrinhos dela iriam para
Espanha e eu regressaria à Covilhã. Antes, porém, eu e o meu primo espanhol
tivemos que limpar os sapatos enlameados: primeiro, esfregando-os nas ervas
cheias de água da chuva, depois, pragmáticos, descalçando-os e limpando-os com
um pano. E esta, hein, primo? Mira,
pues... Por supuesto, claro. Foi mais um dia que passou.
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