No Público, António Guerreiro, o meu colunista preferido, porque não cede à facilidade dos temas e da linguagem, porque não desiste de mostrar a sua cultura livresca, fez uma entrevista ao escritor holandês Ilja Leonard Pfeijffer. Este é um escritor culto, um intelectual na verdadeira acepção da palavra. Também ele não faz cedências. E bem! Não cede até a uma pergunta menos bem conseguida de AG. A forma elegante, mas também sobranceira, como Pfeijffer diz «Não sei se percebi bem a sua pergunta.» Claro que percebeu, percebeu até bem demais. Percebeu que era uma pergunta descabida.
O romance, se bem percebi, faz um retrato nostálgico da Europa. A Europa cuja economia sobrevive sobretudo de se vender aos turistas. Vende-lhes a experiência europeia: a visita aos monumentos, a organização sui generis das suas cidades, testemunhas do passado e reféns da sua História. E a massa de turistas, mais que ver - digo eu - está desejosa de fotografar os palácios, os castelos, os mosteiros, as igrejas, as estátuas, os museus, os teatros, as ruas de outrora, as ruínas gloriosas ...
E fala-se de Veneza, a cidade náufraga num mar de visitantes... etc.
Às tantas, diz ILP:
«nascemos, vivemos, amamos e morremos rodeados de monumentos provenientes de épocas mais gloriosas. Todo esse passado é obviamente a nossa riqueza. Mas talvez haja também o outro lado da moeda, porque quem vive no meio dos vestígios de séculos mais gloriosos, mais cedo ou mais tarde pode ser tentado a concluir que os melhores tempos estão atrás de nós. Esta nostalgia também está no cerne da identidade europeia e pode-nos paralisar. Todos nós aguardamos o regresso do rei Dom Sebastião. Há tanto passado na Europa que já não há espaço para o futuro.»
Pelo menos, não haverá um futuro com indivíduos com "uma cultura clássica", forma como Ilja Leonard Pfeijffer se vê. É essa Europa que vai desaparecer. Que talvez até já tenha desaparecido.
Este livro - que vou ler - traz-me à memória o livro de Stephan Zweig O Mundo de Ontem. Este é um documento, um livro de alguém que, antes de se suicidar, quer deixar um testemunho do mundo antes das guerras, mas sobretudo antes da Segunda Grande Guerra. O livro de Pfeijffer, uma obra de ficção, é, à sua maneira, também, um testemunho da Europa em ruína. Não da guerra, mas da incultura. É um testemunho do mundo líquido em que vivemos: dos "negacionismos" vários, da ignorância, do vale tudo. A ciência e o pensamento mágico competindo pelo mesmo espaço. O homem-massa a dirigir nações...
A Escola, entretanto, trata o Conhecimento como algo que deve estar em segundo plano, até desaparecer!! O conhecimento é obsoleto! Não interessam a Filosofia, a História, a Literatura. Das Humanidades, dizia alguém, só interessa a língua inglesa, o resto é pura perda de tempo. Inclusive o estudo da língua portuguesa. Não serve para nada. Interessam as competências. O, dizem eles, saber-fazer. A literacia digital. O conhecimento científico que se traduza em "coisas" palpáveis. Imagino que a Física Quântica não interesse também nem ao Menino Jesus.
Nunca me esqueço da figura de uma mulher velha, mas muito elegante, de vestido comprido, a vaguear numa bela casa em ruínas. Assim, parece-me, está a Velha Europa. Expugnada da sua glória, da sua elegância antiga, oferece-se ao Outro, que não tarda a manda terraplanar para fazer uma qualquer nova-dubai: brilhante, desmesurada, vaidosa. E muito vazia.
https://www.publico.pt/2021/07/25/culturaipsilon/entrevista/europa-romance-tragico-1971006, consultado em 26 de Julho, 2021
4 comments:
Pois é.
quer dizer, eu nao diria melhor. brilhante entrevista, brilhante anàlise da entrevista. sinto-me um sortudo por a ter visto um dia. obrigado por ser quem é.
Também gosto de ter encontrado uma pessoa com o teu perfil. Alguém que aprecia ideias, palavras, temas. Alguém que não está prisioneiro do "corpo", das sensações, da sensualidade, etc. Há homens que só falam de sexo e mais sexo. Parecem ratos numa roda, atrás da sua pp cauda, ou melhor, de uma "cauda" qualquer... Não há paciência!
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