As notícias quase estarrecem. Quase, na medida em que nada se inscreve verdadeiramente no quotidiano grotesco do momento actual, não actual e desactual.
Muito se fala de mortos. Pedi à minha mãe que não me contasse as notícias, posto que eu me afadigo para ignora-las. Mas ela, naquele dia, estava deveras estupefacta, não só pelo número, como pelo lugar a ocupar pelos mortos. Disse que tiveram de ser colocados num ringue de patinagem no gelo. E que não havia mãos a medir nas agências funerárias. E ainda que os funerais seriam solitários. A minha mãe abismava-se, pois, como se pode ver. Depois, voltou à vaca fria, mas pouco, para dizer que no Equador havia mortos pelas ruas. Decidi então passar os olhos pelo jornal, dado que a minha curiosidade, como se sabe, é mórbida. Com efeito, o que li deixou-me algo …. como dizer… enfim… Havia mortos nas ruas, nas casas, à espera de agentes funerários, que entretanto, dada a pujança do sector, tinham fechado as respectivas agências. Havia igualmente médicos alegadamente a aprender a utilizar ventiladores. E por aí fora: todo um cenário de horror.
Entretanto, leio que num dado país, que não interessa qual, os mortos são contabilizados como recuperados. Porquê? Porque já não contagiam ninguém. Está explicada, assim, a excelência médica que por lá grassa.
Os argumentos contra e a favor do binómio morte de velhos versus economia nem vale a pena explicitar. Há, nas caixas de comentários dos jornais, material abundante, para consulta. Entretanto, outros binómios emergem: pessoas que trabalham com infectados, logo pessoas altamente patogénicas. Algures, os respeitáveis condóminos de um prédio reuniram para impedir a entrada de uma assistente de supermercado no seu apartamento, não fosse ela contaminar toda a vizinhança até à quinta geração. Por falar em vizinhança, em Espanha, uma médica deparou-se com o seu carro vandalizado com os seguintes dizeres: rata contagiosa. Ponto de exclamação.
Inquietante é ler, também, acerca de doentes que fogem dos hospitais que os acolhem; de velhos que são apedrejados quando se encontram, em cadeiras de rodas, em trânsito para outros lares; de infectados que cospem nos outros; de pessoas que lambem prateleiras de supermercado, para gerar pânico; de infectados que se passeiam placidamente, como se nada fosse, etc..
Alberto Gonçalves, numa das melhores crónicas, que escreveu por estes dias, sob a forma de diário, contava o seguinte:
Dia 18. Comecei a aprender fagote para tirar uma fotografia e publicar no Instagram. Quando isto passar tenciono perceber o que é o fagote e, talvez, adquirir um.
Dia 19. Fui à varanda bater palmas aos profissionais de saúde, aos nossos maravilhosos líderes e ao zelo da polícia. Um vizinho incentivou-me: “Cala-te, palhaço!”. Eram 5 da manhã.
https://observador.pt/opiniao/so-eu-sei-porque-fico-em-casa-diario-de-um-cidadao-consciente/Não admira que eu cada vez menos me interesse pela ficção, encantada que ando com a realidade.
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