Saturday, March 24, 2018

Noite de Vento


Fevereiro tinha apenas começado. Eu tinha tanto calor naquela sala sufocante. Abri um pouco a janela. Lá fora a noite era de chuva e de vento. Muito vento. Tirei uma fotografia e pensei que pelas dez horas, quando o dia acabasse, aquela noite, cheia de luzes ao longe, me faria bem. Iria ajudar-me, tirar-me o cansaço imenso, animar-me. Depois sentei-me e fui trabalhando devagar em frente ao computador. Por vezes tudo desaparecia da minha frente. Fechava, então, os olhos e colocava-me junto à fresta da janela aberta, para apanhar o vento na cara.
As dez horas aproximavam-se e ia ficando insegura. Se calhar, era melhor chamar um táxi. Se calhar não. Àquelas horas, estaria insuportavelmente quente e com um cheiro saturado de fim de dia. Iria a pé, pela noite ventosa. E saí. O primeiro impacto com o frio gélido fez-me sentir bem. Tentei caminhar depressa, tentando não cambalear. A meio do caminho, dei-me conta de como o chão estava incerto, torto, cheio de altos e baixos. Tive medo de cair. E o medo foi crescendo. Quando deixei os prédios para trás e fiquei sozinha no passeio torto, o vento quase me derrubou. Parei. Procurei um sítio a que me pudesse agarrar. Nada. Os candeeiros tinham as lâmpadas apagadas. Era uma escuridão completa. E o chão sempre incerto e o vento sempre forte. Pareceu-me que eu respirava de forma estranha. Mas podia ser o barulho da noite de tempestade. Aos poucos, a minha casa estava mais perto. Mas tinha de descer uma escada. Não sabia como fazê-lo. Mas depois lembrei-me e fui descendo degrau a degrau, devagar. Já via a minha casa e fiquei quase feliz. Mas ainda faltava mais caminho para andar. Este mais iluminado e liso. Nisto, sai um casal com dois cães. Havia pessoas, portanto, que viviam o dia, a noite, com normalidade. Eu não. Estava em viagem, a caminho de casa, na direcção certa, mas completamente perdida. Sentia que tinha ainda quilómetros para andar e agora com mais pessoas e cães. Atravessei uma estrada e depois outra e tinha apenas uns metros, poucos, à minha frente. Quando finalmente abri a porta do prédio, a ideia das rotinas que me esperavam em casa não me deixaram sentir o alívio da chegada. Quando entrei no elevador, vi alguém com os olhos muito abertos e com dificuldade em respirar. Era eu. Entrei finalmente em casa. Não me olhei ao espelho, não levantei sequer a cabeça. Eram dias em que sentia muita pena de mim, me ia abaixo, sucumbia a toda a hora, encostada às paredes, ao frigorífico, às portas.
Depois deitei-me. Lá fora o vento continuava. Outrora, essa fúria contra os vidros ter-me-ia embalado e feito dormir. Mas não nesse dia. Nesse dia, procurava na minha mente, algures, uma imagem que me fizesse sossegar, uma imagem tirada dos meus sonhos. Em vão. Aquela não foi uma noite de sossego. Foi uma noite - de muitas - de grande inquietação. Foi uma noite de ter pena de mim, encostada à almofada, às almofadas, de encobrir a cabeça sob as mantas e ter pena de mim...

Wednesday, March 07, 2018

Poeira





O lugar mágico, que já não existe. Aliás, só existia verdadeiramente de noite, naquelas noites em que conseguia ficar nele, sozinha, sentada numa das cadeiras a beber café e a fumar. A luz apagada, claro. Não havia medo nem do isolamento nem do escuro. Mas havia escorpiões e aranhas grandes... Não fazia mal, só o prazer de ter conseguido ficar só eu, a noite inteira, fazia esquecer todos os medos. Até do pio das corujas, que sempre me deprimia um pouquinho. Mas não. Pelas imensas janelas de vidro entrava a claridade da lua. E eu fumava e fumava e fumava e bebia café e o que fosse e ouvia  - baixinho, para não desassossegar os espíritos malignos da noite - Santa Esmeralda uma e outra vez. Ao longe, em Espanha, os montes erguiam colunas compactas de escuridão, mas havia sempre uma luz de um carro, talvez, qualquer coisa que emitia luz elétrica, um pontinho, quase uma estrela, uma coisa bela e surreal. Por vezes adormecia naquela cadeira, cigarro na mão, a cabeça enevoada por qualquer bebida mais forte - não muito. Afinal a alegria de nada acontecer, de estar como que parada na noite, também inebria e embriaga. Adormecia, como estava a dizer, com os olhos postos nas colunas de escuridão à espera de ver aparecer os focos longínquos de luz. E os Santa Esmeralda rodavam no gira-discos uma e outra vez. Eram a única coisa viva na noite calma do sítio mágico. Que já não existe.