Wednesday, August 17, 2016
O Mundo de Ontem
Li 24 Horas na Vida de Uma Mulher, de Stefan Zweig, quando era bastante nova. Lembro-me de ter gostado. Como eu fui daquelas raparigas que estava proibida, pela minha mãe, de ter amigas, amigos, então, nem se fala, surpreendeu-me o mistério que se adivinhava acerca da vida das mulheres. Eu não tinha bem a noção de como as mulheres eram/são diferentes, socialmente, claro. Li depois Amok e, durante muito tempo, Zweig esteve ausente dos meus pensamentos. Há pouco tempo, porém, alguém escreveu um artigo em que falava deste livro de memórias, por assim dizer, de SZ: The World of Yesterday.
Este é um daqueles livros que ilumina partes, para mim obscuras, daquilo que significou a Primeira e Segunda Guerra Mundial (a minha ignorância é vasta, para que conste). Claro que eu li muita ficção sobre a Segunda Guerra, li tudo o que vinha publicado pelas Edições Europa-América. Mas ser um judeu, um judeu rico, culto, um homem de letras (ia dizer bem-sucedido, mas isto soa tanto a besteseller) de renome, aliás, um dos escritores mais lidos durante uma dada época, a contar como foi confrontar-se, de repente, com o desmoronar do seu mundo, não pode comparar-se a nada daquilo que li sobre o assunto. Zweig estudou, viajou incessantemente, sem necessidade de passaporte, como ele explica, dado que só a Primeira Grande Guerra vem trazer essa imposição, escreveu, traduziu de várias línguas para alemão, divulgou homens de letras e artes: escritores, pintores, músicos. Conhece, aliás, todos e todas aqueles/as artistas do seu tempo. É curioso como fala das mulheres que escreviam como iguais! (Há tanto do universo ficcional de Gissing no testemunho de Stefan Zweig...)
Voltando ao mundo de ontem, Zweig dá conta de como as pessoas ouviam as notícias preocupantes acerca da possibilidade de uma guerra, mas não acreditavam mesmo que fosse acontecer. Tal repetiu-se com o aparecimento de Hitler. Há muita inquietação, mas há igualmente um sentimento de que não é possível, de que alguém irá evitar a catástrofe. Ninguém evitou. O escritor passou, assim, de homem aclamado, respeitado, a homem em fuga. Ele, que correu o mundo, acabou os seus dias refugiado no Brasil, com a sua segunda mulher e, pouco depois de terminado este livro, suicidaram-se ambos.
Mas Zweig não chora no ombro do leitor. Não se queixa, não faz beicinho, não apela à emoção. Pelo contrário, tenta de forma objectiva, embora vivida, dar um testemunho acerca de um mundo, de uma forma de viver, assente na ideia de segurança e solidez, que acabou definitivamente. Como homem de letras, sentiu que tinha de deixar este contributo para quem viesse a seguir. Para o mundo do futuro ficar a saber. Ao leitor, contudo, ou melhor, a mim, não me foi possível ficar plácida e serena durante a leitura. A Kleenex podia ter feito o patrocínio. Senti, pela primeira vez, verdadeiramente, a injustiça de julgar segundo a etnia. De aniquilar, destruir - os livros dele foram queimados em praça pública - uma vida (vidas) por causa de uma ideologia. Que absurdo!
Zweig fala de quase tudo: a escola - a visão negativa dos professores - o ser jovem, as mulheres («in our intellectual ignorance we looked upon the other sex as being mentally inferior», 2011 [1943]: p. 59), o sexo e a sífilis, a prostituição, o vestuário, as massas, o crescimento das cidades, a prosperidade, a emancipação das mulheres, os intelectuais da época, Paris - a cidade onde tudo é possível - a sociedade que levou à guerra, etc. O livro não é muito longo, mas parece estar lá tudo!
Quando Harry Zohn, na introdução, disfórica, na qual se foca essencialmente na perda, conclui, citando Walt Whitmann: «This is no book; who touches this touches a man» (2011: loc 286), não é fácil... continuar a leitura.
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