Tive, ontem, uma noite de agitadíssimas aventuras! Não foi por falta de merecimento, posto que aqui há noites sofri um atrocíssimo revés, quando me aterrou em pleno sonho uma criatura medonha vinda directamente da realidade. E em figura de gente (triste figura, claro), com a sua própria tromba e corpo. Até a roupa. Não tivesse eu fugido esbaforida de tal estafermo e poderia sentir, até, o seu cheiro característico: um ranço nojentíssimo, misto de sudorese e mau hálito.
Bem, mas ontem foi uma maravilha.
Tive uma noite prodigiosa. Atentem! Andava eu deambulando por uma rua ladeada
de moradias lindíssimas, quando avisto uma em que já estive e à qual desejo
voltar. Fico, então, junto à porta, na tentativa de me lembrar de uma desculpa
suficientemente boa para que a dona me deixe lá entrar. Mas nada! Claro que
ainda espero que a porta se abra, como é suposto as portas fazerem nos sonhos,
para que eu possa simplesmente entrar. Mas esta é uma porta surda, que não liga
nada à minha agitação ansiosa. Nisto, vejo um homem muito pálido, com ar de
quem não está nada bem e vejo, também, uma cadeira de rodas. Não hesitei.
Coloquei o homem na cadeira e fui em correria, com o homem aos guinchos, bater
à porta da casa linda e hipnótica, implorando que me deixassem entrar para
acolher aquela pobre alma em sofrimento, nosso irmão na fé. A senhora, muito
aristocrática e de nariz franzido disse que não acolhia enfermos, que me
dirigisse ao hospital. «Mas» disse eu, vislumbrando o corredor magnífico, «somos
todos filhos de Deus, etc.». Ao que ela respondeu, peremptória: «o meu pai é o
Sr. Nogueira». E bateu com a porta.
Ora, de um momento para o outro,
não só me vejo impedida de fazer o que queria, como me vejo a braços com um
enfermo, cada vez mais pálido, amarelo até e, já agora, esverdeado em certas
partes, que não interessa aqui mencionar. «Esta não será uma noite de visitação
de casas», pensei, «vejamos o que me espera». E decidi passear o achacado, na
esperança de que o ar fresco lhe fizesse bem. Porém, vendo-o com a cabeça muito
inclinada, temi o pior e estava certa: o homem tinha falecido. Dirigi-me em
correria, de cadeira de rodas em punho, para a casa, esperando que a dona não
negasse a entrada a um defunto. Em vão. A senhora, nada caridosa, nem uma
palavra me disse. Fiquei, claro, muito abatida e sem saber o que fazer. É então
que passa um carro da polícia anunciando fazer coisas terríveis ao defunto,
caso este não se casasse de imediato. Eu ainda gritei para o carro, «mas ele
faleceu, espero que esteja perdoado». E responde a polícia, ao longe, mas de
forma vigorosa, «só o casamento o livra». «Ele há coisas» pensei, «que mundo é
este que não dá sequer paz a quem já partiu?» Dirigi-me então a uma igreja em
forma de carro, com guiador e tudo, e contraí núpcias com o jazente. O padre,
comovido com a minha atitude, disse-me de forma solene: «já o podes enterrar,
irmã». Pois que mais podia eu fazer? E dirigi-me para o banco da frente, posto
que nos tínhamos casado no banco de trás, para me dirigir a uma funerária.
Nisto, passa o carro da polícia e eu gritei-lhes: «casado e bem casado!» E eles
foram para outra freguesia. Com ternura súbita, deitei um olhar meigo ao meu
defunto marido, estirado no banco traseiro, e vi como eram azuis e espantados e
aterrorizados e cada vez mais abertos os seus olhos. «Quem és tu?», ouvi
incrédula. «Sou a tua legítima esposa». «Esposa???». «Sim, esposa. Honrei-te e
livrei-te de veres o sol aos quadradinhos, fica sabendo.», «Mas eu não te amo!»,
«Ora essa, és muito esquisito, para quem já está morto… e azulado!», «Morto?
Desde quando é que os mortos falam?», «Isso te pergunto eu, ingrato!»,
«Ingrato? Fora eu ingrato e uma mulher como tu não poderia gabar-se de ter um
marido como eu!», «Uma mulher como eu? Como te atreves?», «Atrevendo-me… antes
a morte que tal sorte!». E expirou ruidosamente, mas com alívio. Nunca me senti
tão humilhada na minha vida: ser esnobada, como dizem os brasileiros, por um moribundo!
Conduzi, então, o carro igreja rapidamente para a mortuária, onde deixei o
ingrato defunto para ir a enterrar. Não iria acompanhá-lo, pensei, nem me
vestiria de preto. Foi então, enquanto encomendava uma urna de pinho, do mais
barato, que tive uma ideia brilhante. Iria novamente bater à porta daquela
casa. Agora, como viúva, em sofrimento. Aliás, com o marido morto logo depois
da cerimónia. Aliás, antes mesmo da cerimónia. Quem negaria uma palavra de
conforto e um chá, uma cama, uma estadia de uma semana (ou mais), a uma mulher
assim, como eu? «Pinho, mas do mais
caro, se faz favor, e um raminho de crisântemos amarelos». E chorei um
bocadinho. A alegria antecipada da permanência na casa tornou-me generosa. E,
de negro, acompanhei, até ao fim, as exequiazinhas. RIP
Imagem:IngeSchuster, https://x.com/literatura_rte/status/1756245188165414963?lang=ar, consultado em 24 de Abril, 2024
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3 comments:
nossa, doutora, que coisa linda. escorreita, seguida, ligada, ritmada e boa de entender. desculpe o atrevimento mas sou fa incondicional. nao sei onde fica o til para meter no fa. love
Bigada, kido. Ai que coloquei um acento em exequizinhas!!!
Bigada, kido. Ai que coloquei um acento em exequizinhas!!!
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