JUIZ: levante-se o réu!
RÉU: Eu?
JUIZ: É o réu?
RÉU: Posso ser. Já que ninguém se levanta…
JUIZ: Como se declara?
RÉU: Em que sentido, meritíssimo?
JUIZ: Inocente ou culpado?
RÉU: Inocente!
ASSISTENTE: Mentira! Culpado e bem culpado. Forneceu-me todos os seus materiais de trabalho e está a fazer o trabalho que me pertence a mim e que eu não tenho nenhuma vontade de fazer. Disse!
JUIZ: Isto é verdade, senhor réu?
RÉU: É. Eu dei-lhe tudo porque ele me pediu.
JUIZ: Confessa, então.
RÉU: Isto confesso, mas…
ASSISTENTE: Pôs-se a ler aquilo que me cabia a mim, mas que eu não tinha vontade de ler, pondo assim a seriedade de tudo em causa. Eu até lhe disse que aquilo era tudo muito difícil e incompreensível, que ninguém conseguia compreender. Mas ele fez orelhas moucas.
RÉU: Aquilo não era difícil, o assistente é que não deve muito à inteligência. Ah! E foi ele TAMBÉM, repito, TAMBÉM que sugeriu que eu lesse. Só que quando ele viu que eu ia mesmo ler… aí começou a dizer que ninguém entendia.
JUIZ: Que descaro! Olha como ele confessa o crime de que é acusado. Levante-se a sombra.
Sombra: Levantada e pronta, meritíssimo.
JUIZ: O que tem a dizer?
SOMBRA: Tenho a dizer que o réu é muito espaçoso, como dizem os brasileiros. Todo lampeiro e alapado na papelada, para fazer um belo relatório, digo eu, que nunca me engano.
ASSISTENTE: Precisamente. Não só ia começar a deslindar aquela maçada, como me ia obrigar a mim a mexer-me também. E a minha amada sombrinha… – com voz embargada – não adoeças, sombrinha, senão eu meto atestado.
Sombra: Oh... assistentezinho... assistentinho...
RÉU: Mas o relatório tem só uma página.
JUIZ: Não quero diálogo e maricadas no tribunal.
ASSISTENTE: Foi uma brincadeira. Ninguém acredita que eu ia adoecer.
RÉU: Desculpe, mas que raio está a dizer? Quem falou em doenças?
JUIZ: Caluda, meus senhores. Voltemos à vaca fria. Que mais fez?
RÉU: Quem, eu?
ASSISTENTE: Quem mais havia de ser? Sonso!
RÉU: Sonso é você!
– Martelada forte perpetrada pelo juiz irado –
RÉU: Aiiiii…
ASSISTENTE: Aiiiiiii
SOMBRA: Aiiiiiiiiii
JUIZ: Aiiiiiiii
RÉU: Eu fiz tudo o que me tinha sido pedido para eu fazer. Isto é, fiz trabalho que não me pertencia. Que pelos vistos não pertencia a ninguém, aliás…
Assistente: Se você se fizesse de morto, ainda hoje estávamos no belo ripanço.
RÉU: Mas já se tinha falado abundantemente de gastronomia e dietas…
ASSISTENTE: Esse falador de dietas e alimentos é outro abelhudo e incompetente que devia estar com os ossos no tribunal.
SOMBRA: E amigo do nosso inimigo, ainda por cima.
ASSISTENTE: O nosso inimigo que tem coisa com o Belzebu… sempre na converseta. E o réu também!
SOMBRA: Nem mais. Sempre na converseta com o nosso inimigo. Mas no outro dia rimo-nos todos do nosso inimigo. Até o réu…
RÉU: Culpado! Mas não me ri, sorri apenas. Já o assistente até ia caindo da cadeira com a risota. Que grande brincalhão! Quem diria, tão santanário, tão simpático, tão falinhas-mansas e olha…
JUIZ: Ordem! O que fez com o inimigo?
RÉU: Nada.
ASSISTENTE: Mentira. Falou com ele, ajudou-o, cumprimentou-o, tratou-o como gente. Mesmo depois daquilo do mel… e da sua figura com um saco cheio de gelo.
SOMBRA: Ahahahahaah. Desculpe meritíssimo, mas o réu fez uma fraca figura, quando apareceu no sítio com um saco com gelo e não havia nada para congelar.
ASSISTENTE: Ahahahaahahah. Peço desculpa.
JUIZ: O réu falava com o inimigo? Como se atreve?
RÉU: mas se estamos todos no mesmo barco… somos uma tripulação.
ASSISTENTE: Até foi trabalhar para ele, o Belzebu, armado em grande intelectual. É como diz o outro, o poeta: pois se até tu tiraste o título!
JUIZ: Não se desviem do assunto! Que título é esse?
ASSISTENTE: É o título académico.
JUIZ: Como assim?
ASSISTENTE: Os títulos é que lhes dão a volta ao miolo.
SOMBRA: É como eu sempre digo: sobe-lhes o título à cabeça.
JUIZ: Voltemos à vaca, ou melhor, ao boi.
RÉU: Boi?
ASSISTENTE: Boi, sim, sempre a ruminar, sempre a ruminar.
RÉU: Mas eu só sigo ordens. Eu só cumpro metas… já que a assistente e a sombra só encanam a perna à rã, há que dizê-lo…
ASSISTENTE: Protesto, meritíssimo, também roçamos o traseiro pelas esquinas!!
JUIZ: Peço ao réu que não insulte o assistente.
RÉU: Hein??
JUIZ: É verdade que leu toda a papelada?
RÉU: Mas nin…
JUIZ: Responda à pergunta, não tergiverse.
RÉU: Sim… ninguém mais ..
JUIZ: Cale-se!!
RÉU: LEU… leu… desculpe…leu.
JUIZ: É verdade que partilhou todos os seus materiais com o assistente e a sombra?
RÉU: Eles pediram…
- Martelada perpetrada pelo juiz irado -
RÉU: Aiiiiiiiiii… pediram…. SIM!
ASSISTENTE: Aiiiiiiiiiiiiii desrespeito pelo tribunal…
SOMBRA: Aiiiiiiiii sempre armada em chapéu-de-sol sem
JUIZ: Aiiiiiii caluda!!!!!
SOMBRA: …varetas…. Caluda… caludinha…
JUIZ: É verdade que preparou a papinha toda para a assistente comer?
RÉU: É. Ela gosta DE COMER.
ASSISTENTE: Comer é viver!! Se não sabia, fica a saber. Mas eu não lhe pedi para me fazer a papa.
RÉU: Pediu, sim. Pediu, sim.
ASSISTENTE: Pedi, mas não era para você fazer… era para fazer de conta!
SOMBRA: Nem mais! Fazer de conta, seguindo o belo exemplo da nossa bela assistente, que, repito, que nunca faz nada. NADINHA!
ASSISTENTE: Não te canses, sombrinha, olha teus pulmões…
JUIZ: Silêncio, meus senhores, silêncio. Deixem-me trabalhar! Deixem-me trabalhar!
RÉU: Faça de conta que trabalha, meritíssimo. Siga o exemplo da assistente, que nunca faz nada. NADINHA. A calaceira.
JUIZ: Ah, então chama à assistente calaceira. Verdade?
RÉU: Verdade!
JUIZ: E você, é calaceira?
RÉU: Não, senhor juiz. Não sou!
JUIZ: Então confessa...
RÉU: Eu sou trabalhadeira… lhadora.
JUIZ: Condenada! Fechada a audiência. Andor!
ASSISTENTE: Ganhámos, sombrinha. Deixa-me estreitar-te contra meu peito.
SOMBRA: Estreita… estreita.
imagem: https://wonderfulverse.tumblr.com/post/173926419463/zdzislaw-beksinski, em 8 de setembro, 2021
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