Acordei com medo do escuro. Depois pensei que talvez não estivesse acordada. Mas estava. O medo, porém, não estava no meu quarto real, na penumbra, com alguma luz, a da madrugada, a entrar pelos limites da janela. Fechei os olhos, para não ficar já acordada à espera do dia. Vi então o que me perturbava.
Eu estava naquela casa. Tinha ido por um longo corredor para o meu quarto. Atrás de mim, vinha um cão branco, que se imobilizou em frente à porta. Mas eu entrei, e senti logo alguma coisa incómoda. Sentei-me no meio da cama e tentei acender a luz, nos muitos interruptores que saltavam da parede. Mas a luz não acendia. Foi aí que comecei a sentir dificuldade em respirar. Mas eu não estava às escuras. Lá fora, estava o escuro próprio da noite. Mas não no quarto, que estava claro, embora tivesse todas as luzes apagadas. Ah! Era disso que eu estava com medo. Porque é que o quarto não estava escuro? E saí a correr, com a sensação de que alguém vinha atrás de mim. Procurei uma porta para sair para a rua. E vi o cão. Estava encolhido e levemente quadrado. Metia medo. E pena.
Começo então a percorrer o labirinto da casa. Sobre uma mesa vi um x-ato, o mesmo que eu andava há muito para comprar. Agarrei-o. A lâmina fininha, quase meiga. Iria fazer a cena há muito imaginada. Só precisava de um sítio cheio de gente, ou daquela casa de um bairro triste. Sentar-me-ia no meio de todos…ou bateria à porta daquela pessoa. Depois deixar-me-ia ir … Mas para ir a algum lado, precisava de sair daquela casa.
Distraí-me, perdida em fantasias. Quando recuperei a consciência de mim, vi o cão cada vez mais encolhido a desaparecer num enorme corredor. Era o único caminho naquele sítio. Fui atrás dele, que se movia como se fosse um novelo. Rebolava, levantava-se, andava de lado, olhava para mim com olhos grandes e tristes. E continuava. E a lâmina ia quente na minha mão. Entretanto, a casa transformara-se num túnel infindável. De bom grado me deitaria na cama do quarto claro, sem luz, no meio da noite escura. Nessa impossibilidade, sentei-me no chão, cansada, sem fôlego, ao lado do cão, cada vez mais pequeno, quase invisível. Mas amigo, companhia. Devo ter adormecido naquele corredor. Depois devo ter acordado, mas já não naquele sítio.
Tornei a acordar, com um sentimento de medo, de desconforto. Ouvi, então, ruídos. Vinham do computador ligado sobre a minha cama. Nele, estava Sean Penn no aeroporto, sem fôlego, em agonia, preparando-se para mostrar a todos o que o ignoraram, o afastaram, o desamaram, o incompreenderam, que existia e que iria inscrever-se para sempre na memória deles. O espectáculo da solidão absoluta estava ali à minha frente. Já o tinha visto tantas vezes e tantas vezes me sentara junto a Sean Penn, no mesmo sentimento de impotência e abandono sem remédio. Desliguei o computador. Não estava em condições de ver o plano falhar. Falhar tudo. Sean Penn a morrer no avião que tentara sequestrar. E a televisão a dar a notícia de forma monótona. Ninguém soube sequer que ele morreu: nem a ex-mulher, nem o ex-amigo, nem o ex-irmão. Ninguém.
A manhã, senti, já estava instalada no meu quarto. Mas ainda era cedo. Fechei os olhos novamente, tentando ver o cão informe do meu sonho. Nada. Voltei ao corredor labiríntico sozinha. Tornei a deitar-me lá. Fechei os olhos, para fazer de conta. Para voltar atrás, o mais atrás possível. Nisto senti um barulho, um murmúrio, e imaginei que o animal estava ali. Na minha mão, senti também a lâmina meiga e salvífica. Estava em posição de continuar a noite até ao meio-dia. Tinha junto a mim tudo o que precisava para me defender do abandono e, sobretudo, do desespero.
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