Gabriel Mithá Ribeiro
Professor de História defende o silêncio de volta às
escolas. É autoritário e não se importa que os alunos não gostem dele. Basta
gostarem das aulas.
Licenciado em História e especializado em estudos africanos,
Gabriel Mithá Ribeiro gosta ainda de entrar em outras áreas como sociologia ou
psicanálise para entender melhor o pensamento social. Daí não ser estranho
ouvi-lo sobre temas tão distintos como educação. Até porque já deu aulas
durante duas décadas em escolas "ditas difíceis" e, segundo ele, só
quem conhece bem a sala de aula tem condições para estudar e investigar a
realidade escolar e ainda propor políticas no ensino. Mithá Ribeiro é um dos
convidados da Fundação Francisco Manuel dos Santos que a partir de hoje e
durante o resto da semana vai animar o debate online "Onde acaba a
indisciplina e começa a violência", que acontece em simultâneo com as
conferências em Lisboa e Braga "A Indisciplina na Escola" nos dias 17
e 18.
"Onde acaba a
indisciplina e começa a violência" é o mote do debate em que vai
participar. Existe uma fronteira?
É muito difícil separar a indisciplina da violência. O
problema sério nas escolas é a indisciplina. E o problema seríssimo é a pequena
indisciplina.
Porque é a
recorrente?
E porque é a que tem de se combater no início. Dei aulas no
3.o ciclo e secundário durante 20 anos em 11 escolas ditas difíceis da margem
Sul e sei que a violência não é um problema maior. Não digo que não existe,
digo que é empolada. O alvo da questão é a indisciplina. Ou se resolve ou vamos
continuar a enfrentar um dos obstáculos mais estruturais do ensino.
Há dificuldades em
assumir que este é um problema grave nas escolas?
Para percebermos os problemas que condicionam o sistema de
ensino, temos de partir da sensibilidade da sala de aula, que é onde tudo
acontece. Mas toda a sensibilidade que condiciona as políticas e as teorias de
educação é gerada de cima para baixo. Quanto mais distantes estão as pessoas
das salas de aulas, mais poder têm para condicionar o ensino. Há até directores
que estão décadas sem dar aulas e são uma correia de transmissão do que vem de
fora para dentro em vez de levar a sensibilidade da sala de aula para fora. Se
a sala de aula fosse o factor condicionante do pensamento e da definição de
políticas de ensino, há muito que a indisciplina se tinha revelado um problema
central. Além da falácia dos directores, há a falácia dos professores universitários.
É completamente diferente ser professor do superior e do básico e secundário.
As teorias aplicadas no básico e secundário vêm do ensino superior sem nunca
terem sido testadas no próprio ensino superior. Se fossem, saberiam as asneiras
que fazem.
Que asneiras?
A forma como se mexe nos currículos ou se faz as reformas.
Tem de haver uma relação directa entre a prática quotidiana de dar aulas e a
teorização. A estrutura universitária trata dos problemas do ensino sem saber o
que é o ensino. É uma espécie de bloqueio que, se calhar, nem em cem anos vamos
resolver. Mas é preciso alguém dizer que o único que pode teorizar e propor
políticas a sério é quem conhece a sala de aula. Mas é tão errado alguém que só
está na sala de aula e não tem teoria para explicar a vida da sala de aula como
o oposto.
Porque só se reage
perante a violência?
Porque o ruído tornou-se tão normal que só reagimos quando
se ultrapassa o nível do ruído. O silêncio é o aspecto que mais casa com a
construção do conhecimento, mas foi banido das escolas. O ruído foi
naturalizado nas aulas e incentivado pelos pedagogos que defendem a
participação, a permanente actividade dos alunos.
Silêncio quer dizer
reflexão?
Quer dizer adesão voluntária das pessoas à introspecção, à
tranquilidade. Muitos professores queixam-se da indisciplina porque optaram por
modelos pedagógicos participativos, que dão muito poder ao aluno. O modelo
participativo tem virtudes mas também tem problemas e um deles é incentivar a
indisciplina. Se percebermos que a disciplina é central vamos perceber também
que o modelo autoritário directivo consegue mais eficazmente impor o silêncio.
Mas passou-se de um modelo autoritário da ditadura para uma ditadura da
democracia que impôs o modelo participativo. Quem hoje defender o modelo
autoritário parece que está a cometer um pecado capital.
Criar empatia ou
proximidade com os alunos promove a indisciplina?
Os dois modelos devem coexistir, mas todo o aparelho
ideológico torna uma abordagem legítima e a outra ilegítima. E quem constrói
este aparelho é quem não dá aulas. Se dessem, percebiam o erro que é não
incentivar o modelo autoritário. Sou um professor autoritário, mas para isso
beneficio de duas vantagens que são vergonhosas de dizer num estado civilizado.
Uma: sou homem e posso ser fisicamente afirmativo. Se um aluno desobedecer à
minha ordem estou preparado para actuar. Não dou aulas sem estar fisicamente
bem preparado - faço jogging, exercício, etc.
O Estado Novo exigia
aos professores um atestado de robustez física.
Assumo a robustez física como condição de sobrevivência na
sala de aula. Por outro lado, ser negro é uma grande vantagem para lidar com
minorias. A maioria do corpo docente são mulheres de etnia portuguesa. Se
alguém estiver interessado em perceber o que é a violência sobre as mulheres é
entrar numa sala de aula. Combater a violência contra as mulheres é combater a
indisciplina nas escolas. Mas o que temos é um discurso académico politicamente
correcto que, ao mesmo tempo que defende a condição da mulher, defende
exageradamente a condição do aluno que massacra essa mulher. Os governos passam
e este problema arrasta-se. Devíamos ter vergonha disso.
Voltemos à empatia.
Não faz falta?
O ensino assenta em três pilares - conhecimento, professor e
aluno - e nós passámos de um ensino erradamente centrado no professor para um
ensino ainda pior centrado no aluno. O referencial tem de ser o conhecimento
pois ao ser abstracto cria obrigações para docentes e alunos. A empatia na sala
de aula não é entre aluno e professor. Não quero que os alunos gostem de mim.
Quero que gostem da História que ensino. Não preciso de gostar deles. Basta ter
paixão por aquilo que ensino.
É errado centrar o
ensino no aluno?
Se o ensino é centrado no aluno e o aparelho ideológico
prepara as pessoas para isso, fica essa marca no subconsciente. Quando o
professor entra na aula e no subconsciente dele está a ideia de que o ser mais
precioso é o aluno, vai remover tudo o que o atrapalha: a ordem, o esforço e,
às vezes, o conhecimento. Se na cabeça dele está sempre a martelar que o
conhecimento é o mais importante, facilmente remove aquilo que atrapalha o
conhecimento, como por exemplo alunos mal comportados. É o ruído que tem de
sair porta fora. O ensino centrado no aluno é um dos fundamentos da
indisciplina, mas outro é o estatuto do aluno.
Mas o actual até é
mais punitivo.
É no papel. Digo que o estatuto do aluno é uma fonte de
indisciplina porque quando se quer regular relações sociais a partir de
documentos escritos é preciso que tenham valor social e simbólico, que só se
adquire depois de muitos anos, gerações. Leis que regulam comportamentos têm de
ser estáveis para entrarem na cabeça de alunos e de professores. Quando as
regras são estáveis também contaminam as famílias, a comunidade e tudo o resto.
O que se fez nos últimos 20 anos com os sucessivos estatutos do aluno foi matar
a possibilidade de se resolver problemas a partir de documentos escritos.
E qual é a solução?
Dar poder à palavra do professor para que resolva o problema
da indisciplina como entender. Nem que fosse uma medida temporária para
higienizar a função do documento escrito, dos estatutos.
Dar a palavra aos
professores implica reconhecer também a sua autoridade.
E enquanto não se confiar nos professores, o problema da
indisciplina não se resolve. Só que, incrivelmente, quem não confia nos
professores são os cientistas da educação, sempre a emitir regras sobre como
trabalhar, o que fazer e não fazer.
Essas regras
condicionavam-no?
Comecei tão incompetente como qualquer professor. Ao fim de
uns anos, cortei completamente com o chamado ensino auto: o ensino em que não é
o professor que ensina é o aluno que aprende, não é o professor que dá nota é o
aluno que auto-avalia e não é o professor que impõe regras é o aluno que
negoceia essas regras com o professor. Nas minhas aulas, eu ensino e os alunos
aprendem. Nunca promovi auto-avaliação dos alunos e nesse aspecto fui contra a
lei. Se sei que é uma fonte de perda de autoridade porque vou por esse caminho?
Que regras impunha?
As mesmas que a mim mesmo. Chegar a horas, trazer material,
estar quieto e calado. Depois, nos primeiros 15 ou 20 minutos de aula sou eu
que falo. É a parte da aula autoritária e expositiva. Não admito interrupções.
Se permito uma pergunta e respondo, voltarei a ser interrompido e já não saio
do mesmo lugar. Os alunos tomam notas, memorizam e tiram dúvidas no fim.
E correu sempre tudo
bem?
No início do ano há sempre uns espertos que querem
interromper. A minha reacção é dizer "Pegue nas suas coisas e rua!" O
maior trunfo do professor é o dom da palavra. Se um docente não impõe silêncio
nos primeiros 15 minutos da aula, vai andar 20 anos sem saber construir uma
frase pois nunca treinou o direito que tem de falar. O ensino participativo não
percebe a importância da palavra. Se imponho 20 minutos - e às vezes 90 - para
expor a matéria, ao fim de uns anos já sei seduzir pela palavra - entoar,
baixar a voz, contar histórias. Isto é muito exigente. Para expor a matéria
durante 20 minutos é preciso estar bem preparado. Para dar uma aula de 90
minutos com os alunos quietos e calados tenho de saber contar muito bem a
história. Parte da culpa é também dos professores, que gostam de ser
intelectualmente preguiçosos. Hoje nenhum professor é autoritário se não for
competente no domínio do conhecimento. Se os alunos percebem que sabemos o que
estamos a ensinar, acatam as regras mais radicais que possam imaginar. Chegava
a pôr na rua o mesmo chico-esperto todos os dias. Ao fim de um mês, chegava a
dizer ao aluno que ele já estava chumbado.
Desistia dele?
Ou quero salvar todos e vou perder todos ou castigo um ou
dois e salvo 20 e tal. Já expulsei alunos para sempre da minha sala.
Isso é contra a lei?
Toda a escola sabia, os pais sabiam, mas nunca ninguém
contestou. Sabe porquê? Havia silêncio e os alunos aprendiam.
No seu livro "A
Pedagogia da Avestruz", admite que teve atitudes radicais.
Tive um aluno que ficava à porta da sala a gozar enquanto os
colegas entravam. Um dia em que entrou, agarrei-o com a toda a força e rebentei-lhe
a camisa e só não lhe bati. Ficou de tal maneira assustado que nunca mais
apareceu nas minhas aulas. Nesse ano tive o meu carro riscado de ponta a ponta.
Mas nunca contestei. É o preço a pagar. Mas há outros focos de indisciplina
como é o caso do currículo, que promove a instabilidade das regras e não
permite ter uma ideia clara do que é uma aula. Um aluno entra numa aula de 45
minutos, sai e entra noutra de 90, a seguir vai almoçar e tem outra de 45. Essa
inconstância torna impossível sedimentar na cabeça dos alunos as regras para
estar numa aula. Com tantos especialistas em educação é incrível que não se
tenha percebido que a ideia estável de aula corresponde à ideia estável de
comportamento.
As famílias são
empecilhos?
São empecilhos e criaram uma confusão entre o papel do
professor e o papel do pai, o papel do aluno com o papel do filho. Isto foi
terrível no plano da autoridade. A escola abriu-se à comunidade de tal forma
que agora qualquer um se sente com autoridade para dizer o que os professores
deviam ensinar. Quando a escola se fechar sobre ela própria, não terá de se
justificar o porquê das regras que aplica.