Saturday, May 26, 2007

Exposição

A morte é vista de várias formas em diferentes épocas. O morto inspira sentimentos diferentes em tempos e culturas diferentes. Às vezes é reverenciado, outras não. Tudo depende. Mas não é dos mortos que quero falar... É daquela exposição grotesca, pseudo-didáctica, que tem corrido mundo.
Corpos de mortos, devidamente tratados, expondo toda a sua anatomia. É educativo, dizem. É cruel, digo eu. São corpos de indigentes chineses, corpos não reclamados. Gente que não foi amada por ninguém, enquanto viveu, gente anónima... gente que não viveu e que não poderá sequer morrer, isto é, habitar o mundo dos mortos. Ficar aconchegada sob a terra por toda a eternidade. Em vez disso, tornaram-se estátuas, figuras mudas, insepultas, suportando o olhar anónimo de quem as observa ora com fascínio, ora com horror.
É às pessoas reais que já foram, que quero dizer: descansem em paz!

Saturday, May 19, 2007

Fazer serão

Eu tinha talvez 4 ou 5 anos. A aldeia era uma como todas as aldeias naquele tempo e naquela geografia, era só natureza: árvores, montes, rios, lindas paisagens e casas modestas. A minha casa tinha alguma cor, digamos assim, mas a minha mãe era uma disciplinadora. A avó não. Por isso, eu ia com ela, de noite, aquelas noites de Inverno, para ficar a dormir na casa dela. A mãe deixava. Porém antes de deitar, íamos fazer serão junto à lareira do senhor e da senhora António/a. Era uma casa escura, apenas iluminada pelas labaredas do lume que nos aquecia. A conversa deles deveria ser interessante, mas eu não a compreendia. Limitava-me a sentir-me bem. Riam todos muito e eu ria também.
O senhor António era o que falava menos, mas ouvia com atenção. A minha avó e a senhora Antónia tinham stocks inesgotáveis de histórias, mas a minha avó era a que falava mais. Eu ficava à espera que o momento de ouvir: "vamos dormir neta, que já são horas" não chegasse.
Estou aqui e estou a ver-nos. Claro que já todos morreram. Do grupo só eu estou viva, ainda. Eu pequenina e loira com os olhos no fogo a sentir-me feliz, o senhor António ora calado, ora a rir. A avó a falar alto cheia de energia e a senhora Antónia atenta e pronta a desatar às gargalhadas, com o abanador de palha na mão, ora abanava o lume, ora abanava no meio das próprias pernas. Não sei se com malícia ou inocência. Que interessa?
Foram os serões da minha infância. Tão banais mas que me faziam tão feliz!