Era uma coisa
muito desagradável e deselegante. Eu seguia a alta velocidade por uma imensa
avenida, deslizando nos meus próprios sapatos. Lá ia eu espavorida, com o
cabelo em alvoroço, as roupas prestes a voarem-me do corpo e os sapatos a
deitar fumo e faíscas. Estava, para além do mais, envergonhadíssima com a
possibilidade de ser vista por alguém conhecido, naquele estado de andamento
infernal. De repente, o meu improvisado transporte - os sapatos - procedeu a
uma inversão de marcha em direcção a um restaurante cheio de belíssimas
iguarias. Parei. Tinha os pés literalmente em chamas, de tal modo que não
cheguei a saber se o cheiro a churrasco provinha do restaurante ou dos meus
massacrados pés. Sentei-me a uma mesa e logo nela se materializou uma travessa
de batatas fritas, que comi às mãos cheias e de boca escancarada, num
espectáculo embaraçosíssimo de falta de maneiras. Finda a refeição,
preparava-me para continuar a infeliz viagem, quando apareceu uma mulher com
uma caçadeira apontada a mim, a exigir-me o pagamento. Ainda lhe disse que me
tinha esquecido da carteira, que passaria mais tarde para pagar a conta, mas
ela, nada ralada com os meus argumentos, limitou-se a encostar-me os canos da
espingarda à cabeça.
Providencialmente,
tinha crescido uma árvore do dinheiro no meu bolso. Aliás, o bolso também me
tinha crescido. Colhi então abundantes notas e entreguei-as à fulaninha que,
entretanto, se tinha evaporado. Estava a ser uma noite deveras estranha!
Voltando um
pouco atrás, tudo começou com um passeio pela natureza. Eu tinha ido passear
para o pinhal com o meu tio. A meio do caminho, porém, verifiquei que me tinha
esquecido de trazer um lenço para me poder assoar com dignidade. Por isso, pedi
ao meu tio que esperasse por mim e voltei a casa. De regresso ao pinhal, tinha
caído uma noite escura, pelo que encontrei o meu tio, de pijama, a dormir
profundamente. Acordei-o, a custo, e disse-lhe que não havia necessidade de se
ter despido e vestido o pijama para dormir. Ao que ele, com a rabugice do sono,
argumentou que nunca tinha visto ninguém dormir vestido e calçado. E eu
respondi que estava tudo muito bem, mas que não era normal dormir de pijama em
plena natureza. Ao que ele respondeu que era melhor que eu me calasse e lhe
procurasse a roupa e os sapatos para continuarmos o passeio. Ao que eu lhe
respondi, que com a noite tão escura e sem uma lanterna era melhor continuar o
passeio de pijama. Ao que ele respondeu que passear de pijama e descalço era
uma coisa profundamente indigna. Ao que eu lhe respondi que devia ter pensado
nisso antes. Ao que ele respondeu que nunca se tinha divertido tão pouco num
passeio calmo pela natureza. Ao que eu lhe ia responder qualquer coisa, quando,
de repente, se ouviu:
- "Fujam,
fujam! Terroristas! Terroristas! Pr'aqui! Fujam!"
O meu tio
furibundo gritou:
- "Não
somos terroristas! Sou eu e a minha sobrinha."
E foi quando eu
vi homens enormes cheios de armas e senti que alguém nos tapava a boca e nos
arrastava para dentro de uma casa minúscula no meio do pinhal. E então eu disse
às quatro pessoas que lá estavam:
- "Senhores
terroristas, tenham dó... e deixem-nos ir passear...".
E as pessoas
disseram:
- "Não
somos terroristas. Somos reféns e estamos aqui para vos salvar."
- "Mas a casa não tem portas, tem cortinas
e qualquer um pode entrar." Disse eu.
- "Esta
zona é absolutamente interdita a bandidos! Nenhum aqui pode entrar e nós não
podemos sair e, oiçam bem, não deixem que vos vejam de cabeça destapada!
Compreendido?"
E eu respondi:
- "Não.
Importa-se de repetir?"
Ninguém me
respondeu e o meu tio disse:
- "É de
noite. Não se dorme nesta casa?"
Com efeito, a um
canto, estavam duas pessoas adormecidas e o meu tio não hesitou, deitou-se
também. Eu, porém, não resisti a dizer:
- "Dormir
sem lavar os dentes? Sem tomar banho? Já agora, eu bebia um chá e comia uma
tosta com doce de framboesa."
Ninguém me respondeu. Todos se deitaram lado a
lado, silenciosamente, e eu, antes de me deitar também, ainda disse:
- "Esta almofada não é ortopédica!"
A noite foi
medonha e desconfortável. De madrugada, fomos acordados por um berro da refém
mais velha, com a cabeça entrapada, que vinha a rastejar em direcção a casa,
carregando um volume maior do que ela:
- "Fui às
compras, com risco da própria vida, para tomarmos o pequeno-almoço."
E eu agradeci e
disse:
- "Para
mim, pode ser bacon, ovos, sumo de laranja e café. Obrigada."
E esfreguei as
mãos. A mulher, incompreensivelmente mal-humorada, disse:
- "Leite!
Sete litros de leite de cabra. E é se querem."
E eu disse:
- "Se é
para morrermos de fome, vou já entregar-me aos terroristas."
Ninguém me
ligou, era como se eu não existisse. Agarrei, por isso, na minha parte do leite
e refresquei a cara, que estava ressequidíssima. E foi então que vi outra
mulher igualzinha a mim fazer o mesmo. Tinha uma aliada, uma alma gémea.
Enquanto os outros lutavam para salvar a pele, nós lutávamos para a manter
hidratada. Sorrimos, então, entre nós, como se fossemos duas metades de uma
mesma coisa. O tio era o único que continuava a dormir, de pé descalço e pijama
azul bebé.
- "Mais
leite fica."
Disse alguém
exibindo enormes bigodes de leite de cabra. Eu e a outra igual a mim começámos
logo a planear a nossa fuga. Olhámos discretamente por uma janela e diz a
outra:
- "Estão
ali dois bandidos armados até aos dentes."
Eu olhei e
disse:
- "Só vejo
duas Kalashnikoves penduradas em dois pinheiros."
E ela disse:
- "Pois. Ou
isso."
E eu disse:
- "Possivelmente
foram fazer chichi e deixaram as armas nos pinheiros."
Posto isto,
centrámo-nos no essencial. Iríamos escapar enquanto os terroristas estivessem
no WC. Assim fizemos. Cobrimos a cabeça com dois panos de cozinha, o dela
exibindo uma abóbora e o meu um girassol, e lá fomos rastejando até uma enorme
escadaria que tínhamos que subir. Esta era a última barreira entre a barbárie e
a liberdade. Ali chegadas, o meu pano transformou-se num girassol e o dela numa
abóbora. Como é obvio, para além do incómodo, era difícil não darmos nas
vistas. Foi, por isso, com grande esforço, que rumámos escada acima: a outra
com a abóbora a enterrar-se-lhe na cabeça, sufocando e cuspindo sementes e eu,
incomodada com o pólen, agitada por aparatosos espirros. Finda a subida, mais
ou menos sãs mas definitivamente salvas, atirei com o meu girassol e ajudei a
outra a desenterrar a cabeça da abóbora. Finda a penosa operação, ela sumiu-se.
Desapareceu. E foi então que eu, num festival de ridículo e deselegância,
iniciei a corrida desenfreada ao comando dos meus próprios sapatos. Lá ia eu espantando
tudo e todos ao meu redor. De repente, porém, ouviu-se uma voz dizer:
- "Senhores
passageiros, o comboio proveniente de Lisboa, Santa Apolónia, com destino a
Braga terminou a sua marcha."
E parei. Ou
seja, eu não era eu, era o comboio proveniente de Lisboa, Santa Apolónia. Ah!!
Assim já fazia todo o sentido.