Rest in Peace
Sunday, November 17, 2024
Tuesday, November 05, 2024
Passeio na natureza
Era uma coisa
muito desagradável e deselegante. Eu seguia a alta velocidade por uma imensa
avenida, deslizando nos meus próprios sapatos. Lá ia eu espavorida, com o
cabelo em alvoroço, as roupas prestes a voarem-me do corpo e os sapatos a
deitar fumo e faíscas. Estava, para além do mais, envergonhadíssima com a
possibilidade de ser vista por alguém conhecido, naquele estado de andamento
infernal. De repente, o meu improvisado transporte - os sapatos - procedeu a
uma inversão de marcha em direcção a um restaurante cheio de belíssimas
iguarias. Parei. Tinha os pés literalmente em chamas, de tal modo que não
cheguei a saber se o cheiro a churrasco provinha do restaurante ou dos meus
massacrados pés. Sentei-me a uma mesa e logo nela se materializou uma travessa
de batatas fritas, que comi às mãos cheias e de boca escancarada, num
espectáculo embaraçosíssimo de falta de maneiras. Finda a refeição,
preparava-me para continuar a infeliz viagem, quando apareceu uma mulher com
uma caçadeira apontada a mim, a exigir-me o pagamento. Ainda lhe disse que me
tinha esquecido da carteira, que passaria mais tarde para pagar a conta, mas
ela, nada ralada com os meus argumentos, limitou-se a encostar-me os canos da
espingarda à cabeça.
Providencialmente,
tinha crescido uma árvore do dinheiro no meu bolso. Aliás, o bolso também me
tinha crescido. Colhi então abundantes notas e entreguei-as à fulaninha que,
entretanto, se tinha evaporado. Estava a ser uma noite deveras estranha!
Voltando um
pouco atrás, tudo começou com um passeio pela natureza. Eu tinha ido passear
para o pinhal com o meu tio. A meio do caminho, porém, verifiquei que me tinha
esquecido de trazer um lenço para me poder assoar com dignidade. Por isso, pedi
ao meu tio que esperasse por mim e voltei a casa. De regresso ao pinhal, tinha
caído uma noite escura, pelo que encontrei o meu tio, de pijama, a dormir
profundamente. Acordei-o, a custo, e disse-lhe que não havia necessidade de se
ter despido e vestido o pijama para dormir. Ao que ele, com a rabugice do sono,
argumentou que nunca tinha visto ninguém dormir vestido e calçado. E eu
respondi que estava tudo muito bem, mas que não era normal dormir de pijama em
plena natureza. Ao que ele respondeu que era melhor que eu me calasse e lhe
procurasse a roupa e os sapatos para continuarmos o passeio. Ao que eu lhe
respondi, que com a noite tão escura e sem uma lanterna era melhor continuar o
passeio de pijama. Ao que ele respondeu que passear de pijama e descalço era
uma coisa profundamente indigna. Ao que eu lhe respondi que devia ter pensado
nisso antes. Ao que ele respondeu que nunca se tinha divertido tão pouco num
passeio calmo pela natureza. Ao que eu lhe ia responder qualquer coisa, quando,
de repente, se ouviu:
- "Fujam,
fujam! Terroristas! Terroristas! Pr'aqui! Fujam!"
O meu tio
furibundo gritou:
- "Não
somos terroristas! Sou eu e a minha sobrinha."
E foi quando eu
vi homens enormes cheios de armas e senti que alguém nos tapava a boca e nos
arrastava para dentro de uma casa minúscula no meio do pinhal. E então eu disse
às quatro pessoas que lá estavam:
- "Senhores
terroristas, tenham dó... e deixem-nos ir passear...".
E as pessoas
disseram:
- "Não
somos terroristas. Somos reféns e estamos aqui para vos salvar."
- "Mas a casa não tem portas, tem cortinas
e qualquer um pode entrar." Disse eu.
- "Esta
zona é absolutamente interdita a bandidos! Nenhum aqui pode entrar e nós não
podemos sair e, oiçam bem, não deixem que vos vejam de cabeça destapada!
Compreendido?"
E eu respondi:
- "Não.
Importa-se de repetir?"
Ninguém me
respondeu e o meu tio disse:
- "É de
noite. Não se dorme nesta casa?"
Com efeito, a um
canto, estavam duas pessoas adormecidas e o meu tio não hesitou, deitou-se
também. Eu, porém, não resisti a dizer:
- "Dormir
sem lavar os dentes? Sem tomar banho? Já agora, eu bebia um chá e comia uma
tosta com doce de framboesa."
Ninguém me respondeu. Todos se deitaram lado a
lado, silenciosamente, e eu, antes de me deitar também, ainda disse:
- "Esta almofada não é ortopédica!"
A noite foi
medonha e desconfortável. De madrugada, fomos acordados por um berro da refém
mais velha, com a cabeça entrapada, que vinha a rastejar em direcção a casa,
carregando um volume maior do que ela:
- "Fui às
compras, com risco da própria vida, para tomarmos o pequeno-almoço."
E eu agradeci e
disse:
- "Para
mim, pode ser bacon, ovos, sumo de laranja e café. Obrigada."
E esfreguei as
mãos. A mulher, incompreensivelmente mal-humorada, disse:
- "Leite!
Sete litros de leite de cabra. E é se querem."
E eu disse:
- "Se é
para morrermos de fome, vou já entregar-me aos terroristas."
Ninguém me
ligou, era como se eu não existisse. Agarrei, por isso, na minha parte do leite
e refresquei a cara, que estava ressequidíssima. E foi então que vi outra
mulher igualzinha a mim fazer o mesmo. Tinha uma aliada, uma alma gémea.
Enquanto os outros lutavam para salvar a pele, nós lutávamos para a manter
hidratada. Sorrimos, então, entre nós, como se fossemos duas metades de uma
mesma coisa. O tio era o único que continuava a dormir, de pé descalço e pijama
azul bebé.
- "Mais
leite fica."
Disse alguém
exibindo enormes bigodes de leite de cabra. Eu e a outra igual a mim começámos
logo a planear a nossa fuga. Olhámos discretamente por uma janela e diz a
outra:
- "Estão
ali dois bandidos armados até aos dentes."
Eu olhei e
disse:
- "Só vejo
duas Kalashnikoves penduradas em dois pinheiros."
E ela disse:
- "Pois. Ou
isso."
E eu disse:
- "Possivelmente
foram fazer chichi e deixaram as armas nos pinheiros."
Posto isto,
centrámo-nos no essencial. Iríamos escapar enquanto os terroristas estivessem
no WC. Assim fizemos. Cobrimos a cabeça com dois panos de cozinha, o dela
exibindo uma abóbora e o meu um girassol, e lá fomos rastejando até uma enorme
escadaria que tínhamos que subir. Esta era a última barreira entre a barbárie e
a liberdade. Ali chegadas, o meu pano transformou-se num girassol e o dela numa
abóbora. Como é obvio, para além do incómodo, era difícil não darmos nas
vistas. Foi, por isso, com grande esforço, que rumámos escada acima: a outra
com a abóbora a enterrar-se-lhe na cabeça, sufocando e cuspindo sementes e eu,
incomodada com o pólen, agitada por aparatosos espirros. Finda a subida, mais
ou menos sãs mas definitivamente salvas, atirei com o meu girassol e ajudei a
outra a desenterrar a cabeça da abóbora. Finda a penosa operação, ela sumiu-se.
Desapareceu. E foi então que eu, num festival de ridículo e deselegância,
iniciei a corrida desenfreada ao comando dos meus próprios sapatos. Lá ia eu espantando
tudo e todos ao meu redor. De repente, porém, ouviu-se uma voz dizer:
- "Senhores
passageiros, o comboio proveniente de Lisboa, Santa Apolónia, com destino a
Braga terminou a sua marcha."
E parei. Ou
seja, eu não era eu, era o comboio proveniente de Lisboa, Santa Apolónia. Ah!!
Assim já fazia todo o sentido.
Wednesday, October 30, 2024
Doutores... what's the point?
Wednesday, October 09, 2024
Os caçadores de tempestades
Tuesday, October 08, 2024
Ataque de bronquite
Começo pela definição de conceitos: bronquite é um conjunto de broncos.
Isto começou mal e continua mal. Em todas as frentes. A propósito, dizia-me há dias alguém: «Entrei naquele sítio e senti uma grande frieza... » Pois.
O bronco absentista fez o seu deplorável espectáculo de protesto: por sua causa... O quê? Minha causa??? Sua causa!!!! Sua besta preguiçosa e trapalhona!!! Levante a parte traseira da enxerga e faça aquilo que é suposto fazer. O lambão. Pois não é que a besta lambona passou o ano no belo ripanço e agora anda numa choraminguice massacrante na minha direcção? Ninguém quer fazer nada - salvo raras e desonrosas excepções - mas quer ir mais alto, mais longe, mais forte. De facto, a função tornou-se numa espécie de olimpíadas da molenguice. E, verdade se diga, nesta modalidade não faltam campeões.
Por falar em campeões, os jericos também têm atacado com denodado esforço. É uma burricada pegada, senhores. Entretanto, a chaminé ambulante teve um chelique! Não faltava mais nada... Por mim, pode até ter um cento. A propósito, grande chefe cabeça oca anda numa fase de incontinência verbal aguda. É que não se aproveita nada do que provém daquela cachimónia! Muito senhora de si, vai marcando o território com os seus dejectos. Que mais há-de fazer?? E o pobre tonto, com aquelas trombas de incontido sofrimento? A beiça carrancuda e fechadíssima, não vá apanhar uma corrente de ar. E o coiso e a coisa, pobrezinhos, que não dominam conceitos básicos de boa educação. E ainda a outra ou outro, acometida/acometido de lamentável mutismo...
Quando é que poderei virar as costas a isto tudo? O tempo não passa. Pareço a personagem daquele filme que acordava sempre no mesmo dia. Groundhog Day!
PS: antes que me esqueça. O pequeno rei (dos frangos) no seu castelo de pó...
imagem: https://www.facebook.com/photo?fbid=825793139725970&set=a, consultado a 17 de setembro, 2024
Friday, September 20, 2024
Dois versos...
Saturday, September 07, 2024
Os Últimos Dias...
No começo do novo ano, penso sempre como é que vou aguentar o que me espera. Para já, recomeçaram as intermináveis reuniões. E sessões de trabalho. Depois recomeçarão as aulas. Olhar para o horário é sempre um momento de tensão. Que horas me serão distribuídas para eu ficar em suspenso, entre parêntesis, a ansiar pela hora do regresso a casa. Olho para os "colegas". Os novos, embora sejam quase todos velhos, tentam entender em que raio de escola é que vieram parar. O que é que se espera deles. Outros não ligam a nada. O que vier, virá. Mas há os que estão entusiasmados, ou que pelo menos parecem estar. Muito dinâmicos, muito cheios de ideias - quase todas más, sobretudo para os que tiverem que as sofrer na pele. As ideias traduzem-se sempre em mais reuniões, mais grelhas, mais actas, e tudo em tamanho familiar. Em grande. Se a acta costumava ter uma página, passará a ter duas: pelo menos. E assim sucessivamente. E controlo. Muito controlo. Tal como soldados - rasos - num exército, teremos todos que executar as mesmas manobras em sincronia. O sargento berra a ordem e nós obedecemos. Há muito que somos como os martelos andantes do filme The Wall.
Como sempre, logo que ponho um pé na área da acção, desce sobre mim uma dor de cabeça imensa. Quando chego a casa, não me apetece fazer nada. Vou direita aos comprimidos. Tento não ir para a cama, porque sei o que isso significa: inacção. Imobilidade. Anestesia. Tento pensar em algo que me anime. Nada me anima. Fico sentada a ouvir coisas directamente do YouTube, até serem horas decentes para ir para a cama: duas ou três da manhã.
Antigamente, digamos assim, costumava sonhar com a triste função na véspera de me apresentar ao serviço. Este ano, contudo, sonhei durante todo o mês de Agosto com o malfadado lugar. Ali ando eu, sem horário, ou com o horário mas sem a chave da sala, ou com a sala da chave, mas sem saber onde é a sala, ou sabendo onde é a sala mas não tendo alunos, ou tendo alunos, mas não tendo qualquer conhecimento sobre eles. Também me debato com a forma de me deslocar para o local: impossível ir a pé, porque é longe, impossível ir de carro, porque não há, e também não há qualquer outro meio de transporte. E eu a ficar vermelha, nervosa e a transpirar, sem saber como resolver o problema. Passo a noite nisto, mergulhada em preocupações. Ontem, de sexta para sábado, foi diferente. Lembro-me de pouco, mas o suficiente para saber que estive na casa das janelas e na casa amarela da avenida. Esta última, a casa onde desejaria viver. Mas foi tudo muito estranho. Houve uma correria, alguém queria matar alguém. Refugiámo-nos então na casa das janelas. Quando o perigo passou, fiquei eu sozinha e bastante aliviada. Creio que me preparava para fumar, beber café e ficar a ver a noite através das imensas janelas. Mas não. Entrou uma boneca vestida de preto pela porta. Bastante pequena, a falar, ameaçadora. Mandei-a embora, mas ela assim saiu assim tornou a entrar. Muito pequena e maléfica. E se fosse uma menina? Ou seria uma boneca? Agarrei nela, saí, arremessei-a contra uma parede e ela caiu no chão, entre folhas de um canteiro, toda enrolada e com o que parecia ser sangue. Desviei os olhos. As bonecas não sangram. E fui-me embora directamente para a Figueira da Foz, ainda incomodada com o vulto pequenino, vestido de preto e claramente sem vida. Na avenida enorme, bem maior do que realmente é, caminho, como sempre, pelo meio da estrada larga, com carros a passar à esquerda e à direita. Comigo vai um homem. Falamos muito à vontade, como amigos. O amigo que eu gostaria de ter para falar assim, com à vontade. Entretanto, eu vou para a casa amarela e ele continua pela avenida. Sozinho. Há muito tempo não via a casa amarela, pensava, até, que jamais sonharia com ela. Mas não. Estava - estou - tão feliz por reencontrá-la. Tinha novos moradores. Etc. Tudo acabou comigo e mais duas pessoas - os moradores - a tentar sair de um túnel, de rastos, para irmos algures. Eu tinha gente à minha espera num café, para conviver. Mas eu já estava a conviver com aqueles dois estranhos, arrastando-me claustrofobicamente por um túnel paralelo à casa amarela. Um tipo de convívio que me agrada incomparavelmente mais. Claro!
Na fotografia abaixo, posso ver tudo o que me afligia naquele momento. Passaram muitos anos, mas lembro-me de tudo. Se tivesse ainda 17 anos, esta seria a minha cara do regresso às aulas.