Tuesday, November 05, 2024

Passeio na natureza

 


Era uma coisa muito desagradável e deselegante. Eu seguia a alta velocidade por uma imensa avenida, deslizando nos meus próprios sapatos. Lá ia eu espavorida, com o cabelo em alvoroço, as roupas prestes a voarem-me do corpo e os sapatos a deitar fumo e faíscas. Estava, para além do mais, envergonhadíssima com a possibilidade de ser vista por alguém conhecido, naquele estado de andamento infernal. De repente, o meu improvisado transporte - os sapatos - procedeu a uma inversão de marcha em direcção a um restaurante cheio de belíssimas iguarias. Parei. Tinha os pés literalmente em chamas, de tal modo que não cheguei a saber se o cheiro a churrasco provinha do restaurante ou dos meus massacrados pés. Sentei-me a uma mesa e logo nela se materializou uma travessa de batatas fritas, que comi às mãos cheias e de boca escancarada, num espectáculo embaraçosíssimo de falta de maneiras. Finda a refeição, preparava-me para continuar a infeliz viagem, quando apareceu uma mulher com uma caçadeira apontada a mim, a exigir-me o pagamento. Ainda lhe disse que me tinha esquecido da carteira, que passaria mais tarde para pagar a conta, mas ela, nada ralada com os meus argumentos, limitou-se a encostar-me os canos da espingarda à cabeça.

Providencialmente, tinha crescido uma árvore do dinheiro no meu bolso. Aliás, o bolso também me tinha crescido. Colhi então abundantes notas e entreguei-as à fulaninha que, entretanto, se tinha evaporado. Estava a ser uma noite deveras estranha!

Voltando um pouco atrás, tudo começou com um passeio pela natureza. Eu tinha ido passear para o pinhal com o meu tio. A meio do caminho, porém, verifiquei que me tinha esquecido de trazer um lenço para me poder assoar com dignidade. Por isso, pedi ao meu tio que esperasse por mim e voltei a casa. De regresso ao pinhal, tinha caído uma noite escura, pelo que encontrei o meu tio, de pijama, a dormir profundamente. Acordei-o, a custo, e disse-lhe que não havia necessidade de se ter despido e vestido o pijama para dormir. Ao que ele, com a rabugice do sono, argumentou que nunca tinha visto ninguém dormir vestido e calçado. E eu respondi que estava tudo muito bem, mas que não era normal dormir de pijama em plena natureza. Ao que ele respondeu que era melhor que eu me calasse e lhe procurasse a roupa e os sapatos para continuarmos o passeio. Ao que eu lhe respondi, que com a noite tão escura e sem uma lanterna era melhor continuar o passeio de pijama. Ao que ele respondeu que passear de pijama e descalço era uma coisa profundamente indigna. Ao que eu lhe respondi que devia ter pensado nisso antes. Ao que ele respondeu que nunca se tinha divertido tão pouco num passeio calmo pela natureza. Ao que eu lhe ia responder qualquer coisa, quando, de repente, se ouviu:

- "Fujam, fujam! Terroristas! Terroristas! Pr'aqui! Fujam!"

O meu tio furibundo gritou:

- "Não somos terroristas! Sou eu e a minha sobrinha."

E foi quando eu vi homens enormes cheios de armas e senti que alguém nos tapava a boca e nos arrastava para dentro de uma casa minúscula no meio do pinhal. E então eu disse às quatro pessoas que lá estavam:

- "Senhores terroristas, tenham dó... e deixem-nos ir passear...".

E as pessoas disseram:

- "Não somos terroristas. Somos reféns e estamos aqui para vos salvar."

-  "Mas a casa não tem portas, tem cortinas e qualquer um pode entrar." Disse eu.

- "Esta zona é absolutamente interdita a bandidos! Nenhum aqui pode entrar e nós não podemos sair e, oiçam bem, não deixem que vos vejam de cabeça destapada! Compreendido?"

 E eu respondi:

- "Não. Importa-se de repetir?"

Ninguém me respondeu e o meu tio disse:

- "É de noite. Não se dorme nesta casa?"

Com efeito, a um canto, estavam duas pessoas adormecidas e o meu tio não hesitou, deitou-se também. Eu, porém, não resisti a dizer:

- "Dormir sem lavar os dentes? Sem tomar banho? Já agora, eu bebia um chá e comia uma tosta com doce de framboesa."

 Ninguém me respondeu. Todos se deitaram lado a lado, silenciosamente, e eu, antes de me deitar também, ainda disse:

-  "Esta almofada não é ortopédica!"

A noite foi medonha e desconfortável. De madrugada, fomos acordados por um berro da refém mais velha, com a cabeça entrapada, que vinha a rastejar em direcção a casa, carregando um volume maior do que ela:

- "Fui às compras, com risco da própria vida, para tomarmos o pequeno-almoço."

E eu agradeci e disse:

- "Para mim, pode ser bacon, ovos, sumo de laranja e café. Obrigada."

E esfreguei as mãos. A mulher, incompreensivelmente mal-humorada, disse:

- "Leite! Sete litros de leite de cabra. E é se querem."

 E eu disse:

- "Se é para morrermos de fome, vou já entregar-me aos terroristas."

Ninguém me ligou, era como se eu não existisse. Agarrei, por isso, na minha parte do leite e refresquei a cara, que estava ressequidíssima. E foi então que vi outra mulher igualzinha a mim fazer o mesmo. Tinha uma aliada, uma alma gémea. Enquanto os outros lutavam para salvar a pele, nós lutávamos para a manter hidratada. Sorrimos, então, entre nós, como se fossemos duas metades de uma mesma coisa. O tio era o único que continuava a dormir, de pé descalço e pijama azul bebé.

- "Mais leite fica."

Disse alguém exibindo enormes bigodes de leite de cabra. Eu e a outra igual a mim começámos logo a planear a nossa fuga. Olhámos discretamente por uma janela e diz a outra:

- "Estão ali dois bandidos armados até aos dentes."

Eu olhei e disse:

- "Só vejo duas Kalashnikoves penduradas em dois pinheiros."

E ela disse:

- "Pois. Ou isso." 

E eu disse:

- "Possivelmente foram fazer chichi e deixaram as armas nos pinheiros."

Posto isto, centrámo-nos no essencial. Iríamos escapar enquanto os terroristas estivessem no WC. Assim fizemos. Cobrimos a cabeça com dois panos de cozinha, o dela exibindo uma abóbora e o meu um girassol, e lá fomos rastejando até uma enorme escadaria que tínhamos que subir. Esta era a última barreira entre a barbárie e a liberdade. Ali chegadas, o meu pano transformou-se num girassol e o dela numa abóbora. Como é obvio, para além do incómodo, era difícil não darmos nas vistas. Foi, por isso, com grande esforço, que rumámos escada acima: a outra com a abóbora a enterrar-se-lhe na cabeça, sufocando e cuspindo sementes e eu, incomodada com o pólen, agitada por aparatosos espirros. Finda a subida, mais ou menos sãs mas definitivamente salvas, atirei com o meu girassol e ajudei a outra a desenterrar a cabeça da abóbora. Finda a penosa operação, ela sumiu-se. Desapareceu. E foi então que eu, num festival de ridículo e deselegância, iniciei a corrida desenfreada ao comando dos meus próprios sapatos. Lá ia eu espantando tudo e todos ao meu redor. De repente, porém, ouviu-se uma voz dizer:

- "Senhores passageiros, o comboio proveniente de Lisboa, Santa Apolónia, com destino a Braga terminou a sua marcha."

E parei. Ou seja, eu não era eu, era o comboio proveniente de Lisboa, Santa Apolónia. Ah!! Assim já fazia todo o sentido.


Santa Apolónia

 


Eu adoro a estação de Santa Apolónia... E o nome Santa Apolónia: lindo!!!