Friday, May 31, 2024

Insónia

 


Eu gosto daquele momento do dia em que já estou na cama e me concedo a benesse de estar a ler ou no computador, de luz acesa, até à uma e trinta da manhã. Isto nos dias de trabalho. Hoje, por exemplo, estarei a usufruir da minha companhia até às 3 ou 4 da manhã. Mas porque é fim-de-semana. Ora, de 3ª para 4ª feira, estava eu já a transgredir, posto que já eram quase duas, quando oiço um barulho que vinha da janela. Pensei, deve ser o vento, que está a entrar pela frestazinha que deixei aberta, a agitar as cortinas. Mas não se ouvia vento. Será algum bicho a entrar pela dita abertura? E levantei-me para averiguar e para fechar a janela. Mal meti um pé no chão, entra um pássaro no meu quarto. Logo um pássaro! Se fosse um rastejante, eu aplicava-lhe a minha técnica infalível (a bem dizer) e em pouco tempo o animal seria devolvido à rua. Mas era um pássaro a esvoaçar vigorosamente, como se estivesse a praticar para as olimpíadas. 
Abro um armário e tirei de lá um dos muitos objetos de limpeza que possuo. Se eu fizesse uso de um terço dos materiais de limpeza que tenho, a minha casa estaria cintilante. Creio que o seu brilho poderia ser avistado da lua, logo a seguir à Grande Muralha da China. Agora, para que conste, até tenho tinta em roll-on!! Bem, munida daquela coisa comprida com uma esponja na ponta, desatei a atirar-me ao bicho voador, temendo que ele me poisasse na cabeça. A medo, consegui escancarar uma janela, e, à bordoada, tentei encaminhar a ave para lá. Não sei quanto tempo estive nisto. E o pássaro incansável. Olho para o relógio, já eram duas e meia. Ou seja, a triste função já durava há mais de meia hora. Dou então uma escapadela à casa de banho, para agarrar uma toalha, com a qual iria sacudir o bicho. De regresso ao quarto, não vejo nada. Olhei em volta, o melhor que pude e, de repente, no cortinado preto, vejo uma mancha. Aproximei-me e lá estava o dito numa pose muito sui generis: era um morcego.  Agarrei o instrumento da esponja e tentei acertar-lhe, posto que já estava numa tal pilha de nervos, que até me apetecia agarrá-lo à dentada. O bicho, incólume, continuou, com grande estrépito de asas, a voar em redor do meu quarto. Olho para o relógio: quase três da manhã. Estava furiosa. Seria de ir dormir para outro sítio? Não. Nem pensar em deixar a parte favorita da minha casa à mercê daquele mamífero sem sentido de oportunidade. Desato então a atirar a toalha em todas as direções e, ocasionalmente, a espécie de vassoura, tendo ainda acertado no candeeiro do tecto, que ficou a abanar com grande estardalhaço de parafusos e vidro. Que horas são? Três horas!! 
Decidi então ir à cozinha, apesar de não me agradar a ideia de deixar a janela aberta sem vigia, não fosse a D. morcega e seus morceguinhos entrar, para fazerem companhia ao morcego seu marido. Mas tinha que ir em busca de armas químicas: insecticida e álcool em spray. Chegada ao quarto, silêncio. E pensei, o menino deve estar algures de cabeça para baixo, a descansar, a retemperar forças, para continuar a azucrinar-me até ao nascer do sol. Pus-me novamente a prescrutar cada prega da cortina preta e dos sítios mais recônditos: atrás da cama, atrás disto e daquilo. Nada. Depois bati no armário e fiz ainda outros batuques, para espantar o animal, esperando que nenhum vizinho se viesse queixar do barulho. Nada. Teria ele saído pela janela? Já não seria sem tempo! Nova ronda. Nada. Resolvi dar por encerrada a função. Fechei a janela, encharquei as cortinas de álcool e passei uma toalha de limpeza no chão. De seguida, aspergi a minha cama com um spray desinfectante e mudei as fronhas das seis almofadas. Também puxei os lençóis para trás, em susto, não fosse o animal ter-se aninhado nas minhas castas cobertas: já agora... 
E foi quando tomei consciência de mim. Estava numa lástima: alagada em transpiração. O pijama  pingava. Apeteceu-me tomar banho, mas não àquela hora, a caminho das quatro da manhã. Mudei o pijama. Lavei as mãos e os braços, passei uma aguinha Avène pela cara, penteei-me, pus umas gotinhas de Insolence da Guerlain, tomei um ansiolítico e fui-me deitar. 
Need I say more?


https://www.istockphoto.com/pt/fotos/morcego-orelhas-de-rato, consultado em 31 de Maio, 2024

Sunday, May 26, 2024

A igreja estava toda iluminada



Tive, ontem, uma noite de agitadíssimas aventuras! Não foi por falta de merecimento, posto que aqui há noites sofri um atrocíssimo revés, quando me aterrou em pleno sonho uma criatura medonha vinda directamente da realidade. E em figura de gente (triste figura, claro), com a sua própria tromba e corpo. Até a roupa. Não tivesse eu fugido esbaforida de tal estafermo e poderia sentir, até, o seu cheiro característico: um ranço nojentíssimo, misto de sudorese e mau hálito. 


Bem, mas ontem foi uma maravilha. Tive uma noite prodigiosa. Atentem! Andava eu deambulando por uma rua ladeada de moradias lindíssimas, quando avisto uma em que já estive e à qual desejo voltar. Fico, então, junto à porta, na tentativa de me lembrar de uma desculpa suficientemente boa para que a dona me deixe lá entrar. Mas nada! Claro que ainda espero que a porta se abra, como é suposto as portas fazerem nos sonhos, para que eu possa simplesmente entrar. Mas esta é uma porta surda, que não liga nada à minha agitação ansiosa. Nisto, vejo um homem muito pálido, com ar de quem não está nada bem e vejo, também, uma cadeira de rodas. Não hesitei. Coloquei o homem na cadeira e fui em correria, com o homem aos guinchos, bater à porta da casa linda e hipnótica, implorando que me deixassem entrar para acolher aquela pobre alma em sofrimento, nosso irmão na fé. A senhora, muito aristocrática e de nariz franzido disse que não acolhia enfermos, que me dirigisse ao hospital. «Mas» disse eu, vislumbrando o corredor magnífico, «somos todos filhos de Deus, etc.». Ao que ela respondeu, peremptória: «o meu pai é o Sr. Nogueira». E bateu com a porta.  

Ora, de um momento para o outro, não só me vejo impedida de fazer o que queria, como me vejo a braços com um enfermo, cada vez mais pálido, amarelo até e, já agora, esverdeado em certas partes, que não interessa aqui mencionar. «Esta não será uma noite de visitação de casas», pensei, «vejamos o que me espera». E decidi passear o achacado, na esperança de que o ar fresco lhe fizesse bem. Porém, vendo-o com a cabeça muito inclinada, temi o pior e estava certa: o homem tinha falecido. Dirigi-me em correria, de cadeira de rodas em punho, para a casa, esperando que a dona não negasse a entrada a um defunto. Em vão. A senhora, nada caridosa, nem uma palavra me disse. Fiquei, claro, muito abatida e sem saber o que fazer. É então que passa um carro da polícia anunciando fazer coisas terríveis ao defunto, caso este não se casasse de imediato. Eu ainda gritei para o carro, «mas ele faleceu, espero que esteja perdoado». E responde a polícia, ao longe, mas de forma vigorosa, «só o casamento o livra». «Ele há coisas» pensei, «que mundo é este que não dá sequer paz a quem já partiu?» Dirigi-me então a uma igreja em forma de carro, com guiador e tudo, e contraí núpcias com o jazente. O padre, comovido com a minha atitude, disse-me de forma solene: «já o podes enterrar, irmã». Pois que mais podia eu fazer? E dirigi-me para o banco da frente, posto que nos tínhamos casado no banco de trás, para me dirigir a uma funerária. Nisto, passa o carro da polícia e eu gritei-lhes: «casado e bem casado!» E eles foram para outra freguesia. Com ternura súbita, deitei um olhar meigo ao meu defunto marido, estirado no banco traseiro, e vi como eram azuis e espantados e aterrorizados e cada vez mais abertos os seus olhos. «Quem és tu?», ouvi incrédula. «Sou a tua legítima esposa». «Esposa???». «Sim, esposa. Honrei-te e livrei-te de veres o sol aos quadradinhos, fica sabendo.», «Mas eu não te amo!», «Ora essa, és muito esquisito, para quem já está morto… e azulado!», «Morto? Desde quando é que os mortos falam?», «Isso te pergunto eu, ingrato!», «Ingrato? Fora eu ingrato e uma mulher como tu não poderia gabar-se de ter um marido como eu!», «Uma mulher como eu? Como te atreves?», «Atrevendo-me… antes a morte que tal sorte!». E expirou ruidosamente, mas com alívio. Nunca me senti tão humilhada na minha vida: ser esnobada, como dizem os brasileiros, por um moribundo! Conduzi, então, o carro igreja rapidamente para a mortuária, onde deixei o ingrato defunto para ir a enterrar. Não iria acompanhá-lo, pensei, nem me vestiria de preto. Foi então, enquanto encomendava uma urna de pinho, do mais barato, que tive uma ideia brilhante. Iria novamente bater à porta daquela casa. Agora, como viúva, em sofrimento. Aliás, com o marido morto logo depois da cerimónia. Aliás, antes mesmo da cerimónia. Quem negaria uma palavra de conforto e um chá, uma cama, uma estadia de uma semana (ou mais), a uma mulher assim, como eu?  «Pinho, mas do mais caro, se faz favor, e um raminho de crisântemos amarelos». E chorei um bocadinho. A alegria antecipada da permanência na casa tornou-me generosa. E, de negro, acompanhei, até ao fim, as exequiazinhas. RIP  
Imagem:IngeSchuster, https://x.com/literatura_rte/status/1756245188165414963?lang=ar, consultado em 24 de Abril, 2024


Saturday, May 25, 2024

"Lendário somatório de disparates"

Começo por dizer que o título deste texto era um nick de um comentador do jornal X. Tinha-o em armazém para usar oportunamente. E foi hoje, depois de ouvir mais um lendário somatório de disparates na live do pdf, o sábio. E a primeira pergunta é "porque é que eu oiço aquilo? Porque me distrai, enquanto trato das roupas. Porque embora passe a maior parte do tempo a ferver com os dislates, por vezes há frases que me fazem rir até às lágrimas. Exemplo: no outro dia, saiu no Público um artigo apontando o nome de alguns youtubers jovens de um determinado partido que passam uma mensagem xenófoba e racista e etc. Pois bem, diz o pdf, "não tocaram no meu nome, não percebo - ele é o maior intelectual do dito partido, diz ele, e a coqueluche das redes sociais - ah, claro, dado o meu estatuto académico, os jornalistas respeitam-me." Tá bem abelha. É um respeito!? Hoje mesmo, depois de grandes elogios a uma senhora, que ele dizia ser muito novinha, a julgar pela fotografia, perguntou a idade à menina e ficou a saber que ela tem idade para ser mãe dele. Ficou todo frustrado. Afinal era mais uma velha, coisa de que ele não gosta nada e pergunta: mas porque é que eu só tenho subscritoras velhas, gordas e lésbicas? Eu não gosto de velhas. E eu olhei para as três jarras da live, ele e mais dois indivíduos que parecem aqueles velhos dos marretas e penso, mas a que propósito é que estariam mulheres jovens a assistir aos dislates destas carcaças??? Nenhum deles se aproveita, serão boas pessoas, quando estão a dormir, naturalmente, mas não têm gracinha nenhuma. Quanto à conversa, é sempre a mesma coisa. O pdf gaba-se como se não houvesse amanhã. Os outros ouvem e calam, parecendo embasbacados perante a sorte de poderem privar com tão vetusta sapiência. Um diz que o pdf é um homem diferenciado. Pois! Os temas das lives são quase totalmente ignorados, na maioria das vezes, posto que os três taratas vão sempre parar às mulheres. 

São todos garanhões. Hoje um informou que à excepção de americanas, já marchou tudo. Homem viajado, já experimentou de tudo o que havia para experimentar. O pdf parece ser grande especialista em mulheres dos trópicos - é melhor não trazer a nacionalidade para esta estrumeira. Diz que aguentam seis horas "naquilo" sem parar. Depois dá umas explicações biológicas sobre as mulheres. Uma coisa muito preconceituosa. Hoje disse que uma mulher que não tem filhos é uma mulher mutilada. Querem lá ver que é isso que eu sou? Não. Eu sou uma mulher que não tem filhos, que nunca os desejou ter e que muito se alegra de não os ter: pelo menos acertei numa decisão que tomei para a minha vida. Acrescentou que as mulheres têm a ética do cuidado - acho que é isto - enquanto os homens querem estudar, enfim, cultivar o intelecto. Pelos vistos sou um homem: eu também quero é ler e estudar e cultivar o intelecto. Ele fala das mulheres como uma mole homogénea que está à espera do macho alfa para as levar ao altar, lhes dar dinheiro, filhos e um rumo. Ele é assim um epígono de Pedro Arroja, o famoso o teórico da origem dos genitais masculinos. 

Hoje o tema era dar resposta à deputada Isabel Moreira, que se queixou de ter sido chamada vaca no parlamento. Para meu espanto, o bom do pdf começou por repudiar este avacalhamento parlamentar. E espantou-me porque ele próprio, num outro vídeo, tinha enchido a barriga de nomes à dita deputada. Até disse, e eu ri-me, que perante tal deputada todos os homens ficam com a genitália pequena e murcha. E disse ainda que a referida deputada, à semelhança de muitas outras, está mal comida. Mas voltemos à live de hoje. Repudiou a vaca, porque - vejam só - chamar vaca a Isabel Moreira é faltar ao respeito ao pai dela. Não a ela, mas ao pai dela! Só espero que o pai dela, de quem eu gostava bastante, se houver fantasmas, venha puxar a perna ao estrepitoso professor doutor, pois estou em crer que se orgulhava da filha: uma mulher preparada, combativa, que está, como os outros deputados, a defender as ideias em que acredita. E esclareço que não sou particular admiradora das ideias da senhora deputada, embora haja assuntos que dizem respeito às mulheres e não só em que me revejo absolutamente. Chagada aqui, à questão da vaca, ainda escrevi um comentário, que prontamente apaguei, mas não me contive em comentar quando começou a dizer - e já não é a primeira vez - que no Brasil não se fala Português, no que foi logo acolitado pelos dois outros pespegos. Fiquei a ferver. Que ele fale das mulheres como se fossem animais, nem me aquece nem me arrefece. A história da humanidade esta cheia destes discursos. Se para ele aparecer tem de rebaixar as mulheres, seja. O que ele diz não me impede de fazer aquilo que me dá na gana. Agora a língua portuguesa, não. Eu sou doutorada em Letras. Não tenho estômago para este tipo de declarações impressionistas, sem nenhuma fundamentação digna desse nome. E deixei o seguinte:

« A língua que se fala no Brasil é o Português! O português tem duas normas: a europeia e a brasileira. Assim como o inglês tem a norma americana e a britânica. Agora, as línguas não são corpos amorfos. Pelo contrário. Têm variantes: diacrónicas, sincrónicas; diatópicas, diastráticas e diafásicas. Os dialectos têm a ver justamente com as variantes diatópicas, geográficas, a forma como uma língua é actualizada pelo falante.  Não se percebe o que se diz no Brasil? Segundo esse critério, que língua é que se fala nos Açores? É português, claro. E legítimo. Não há Português de primeira e de segunda. Fala-se bem e mal português. Falar mal não tem a ver com as normas. Tem a ver com o não respeitar a morfologia, o léxico, a sintaxe. As línguas são muito complexas, porque são humanas e têm tantas formas de ser faladas quanto os falantes que as usam. Para além do português padrão, aquele que é aceite como a melhor forma de português, que, na norma europeia, corresponde ao português falado em Coimbra e em Lisboa, há muitas outras formas de falar uma língua. Muitas variantes ou variações. A uniformidade é diminuta e é-o cada vez menos, na medida em que cada vez mais se descura o bem falar. O calão, as gírias, enfim, as formas "marginais" de falar vão invadindo o "centro" da língua, contaminando o padrão. Dizer que no Brasil não se fala Português é atacar a língua portuguesa: retirar-lhe grandeza, riqueza, expressividade. É querer espoliá-la da sua dimensão agregadora e, já agora, económica. É querer reduzi-la à sua pequenez. Uma língua morre quando morre o seu último falante. Quantos mais falantes, mais viva é uma língua, mais é defendida por aqueles que a falam (e a amam). Outra coisa,  uma língua é tão forte quanto o país/países que a falam. O inglês é a língua internacional, porque depois do Reino Unido - o maior império - é, também, a língua dos Estados Unidos, aquele que continua a ser visto como o país mais forte. Mais: não fora a complexidade do mandarim, quem sabe qual seria o estatuto da China, hoje. Uma língua não é aquela coisa que está ali, acessível, para cada um utilizar e se achar competente para pontificar sobre ela, sem reflexão e conhecimento. A língua portuguesa é mais forte por ser a língua oficial de tantos países, um dos quais o Brasil, um país enorme, rico, com uma palavra a dizer no mundo. Não se deve falar levianamente sobre a língua. Leia-se o livro A Morte das Línguas de David Crystal, para se compreender a problemática da sobrevivência das línguas.»

Posto isto, vou-me deitar, porque a minha mãe telefona-me, hoje, por volta das seis da manhã, antes de partir para o seu passeio dominical... 

Imagem: Ghosts on the Tree by Franz Sedlacek(1933), https://www.facebook.com/photo/?fbid=414007768197242&set=a.107022938895728, consultado em 24 de Abril, 2024

Friday, May 17, 2024

A Escolha

 





Surgiu no jornal Expresso, um dia destes, um texto em que se colocava aquilo a que chamaram, se não estou em erro, o dilema do urso. O dito dilema consistia em perguntar a mulheres se preferiam ficar sozinhas, numa floresta, com um homem desconhecido ou com um urso. Claro, que comecei por tentar responder à questão. Imaginei-me numa floresta distante, no meio de um grande arvoredo, com um curso de água algures, a fazer-se ouvir, e vi surgir, subitamente, por entre as árvores, um homem. Aqui chegada, parei para pensar. E pensei que haveria 90% de possibilidades de que esse homem fosse uma pessoa decente, que ficasse tão contente de encontrar ali um ser humano, como eu própria ficaria. Imaginei que juntos encontraríamos estratégias para estarmos mais seguros e confortáveis e também mais fortes para sairmos ilesos da floresta. E se fosse uma mulher mal intencionada, com instinto homicida? Bem, desde que estivéssemos as duas equipadas de unhas e cabelos, estaríamos em pé de igualdade, para nos esgadanharmos e puxarmos o cabelo até cairmos as duas para o lado, sem maior agravo que algumas clareiras no couro cabeludo e alguns arranhões em esteroides. Depois, seria fugir uma para cada lado, rezando alto e suplicando ao divino, que não colocasse novamente tal besta no nosso caminho. Fácil! Mas o problema não envolve um encontro com uma mulher, um encontro mais ou menos simétrico. Envolve um homem desconhecido e um urso. Ponderada a questão dos 90% de homens normais, há que pensar nos restantes 10%. Nos predadores. Naquelas criaturas que mal podem acreditar na sorte que têm, quando lhes aparece, do nada, uma mulher, ou seja, um parquinho inesgotável de diversões várias. Alguém que dominam facilmente, posto que são fisicamente mais fortes. Isto, tendo em conta uma definição de força da qual não está ausente uma grande dose de cobardia e de falta de vergonha. E o urso? Aqui chegada, resolvi ver o que é que se tinha apurado a partir da resposta de outras mulheres.

Bem, as mulheres, de um modo geral, não hesitavam: preferiam o urso! Este é previsível. Se se sentir ameaçado, avança e faz o que tem a fazer rapidamente e em força. Se não pressentir ameaça, mantém-se longe. 1 a 0 para o urso. Mas os filmes de ursos a atacarem pessoas levou-me a apreciar outros ângulos da questão, antes de me decidir pela resposta certa, do meu ponto de vista. E foi quando me lembrei de uma história que ouvi no Homem Que Mordeu o Cão.

Uma rapariga de uns 7 anos ficou abandonada numa floresta. Não me lembro das circunstâncias. Nessa floresta havia macacos, espécie com a qual se sentiu mais identificada e resolveu seguir. Mas os macacos não pareciam muito satisfeitos. Afinal, ela falava, o que para um macaco não é um comportamento muito aceitável. Ela, no entanto, apesar do acolhimento frio, continuou a segui-los, a comer o que eles comiam e a adoptar alguns comportamentos deles. Deixou também de falar, posto que era uma competência humana muito pouco adaptativa naquele contexto. E os macacos foram-se habituando a ela. Um dia, diz, ficou muito emocionada, quando um dos seus companheiros lhe agarrou na mão e encostou a cabeça no ombro dela. E os anos foram passando. Ela já não tinha esperança de que a encontrassem, mas, pelo menos, não estava sozinha. Um dia, porém, os macacos ficaram muito agitados e emitiam uns sons de alarme. O que seria? O seu território tinha sido invadido por um grupo de caçadores. Os macacos, sábios, fugiram deles, mas ela viu naqueles homens uma oportunidade de ser resgatada. E foi. Os homens desconhecidos agarraram na menina, levaram-na para uma casa de prostituição e venderam-na. Ela passou, assim, da liberdade da floresta e dos amigos símios, para a clausura infecta de uma casa de passe, onde ficou até aparecer um homem. Um homem normal. Um ser humano. Claro que se casaram e foram felizes para sempre.  

Qual seria a probabilidade de eu não encontrar um homem normal? 10%, segundo a minha própria estatística. Se calhar generosa. Ultimamente, tenho ouvido tantas enormidades da boca de um homem desbocado, desprezível e tóxico que não hesito em responder: o urso! Quero encontrar no meio da floresta um urso. E se ele for bem forte e decidido, nem me importava que se sentisse ameaçado...

Imagem:https://www.facebook.com/photo/?fbid=987930926032121&set=a.244609543697600 , consultado em 20 de Maio, 2024

Wednesday, May 08, 2024

Leonor

 



Nas aldeias, todos se conhecem e sentem em partes iguais toda a tristeza das situações inesperadas. A morte não é, de todo, uma intrusa. Ela chega sempre, não importa a hora ou o instante. Mas é ela que vem, sempre mais ou menos indesejada. Hoje não aconteceu assim. Foi alguém que se levantou, se preparou e foi à procura dela, deliberadamente. Decidiu ir embora e executou a partida. Para trás, deixou toda a gente agitada, devastada, tensa. E deixou também a aldeia cheia de estranhos: polícias, bombeiros, legistas, psicólogos. Mas que lhe interessa? Ela já não é deste mundo. Já não a incomodam as vozes dos estranhos e o ruído dos carros pelos caminhos. Ela está em paz. Está sossegada. Não lhe interessa também, já, a súbita tristeza dos que ficaram. Quem sabe, os que agora entristecem nunca lhe tenham dito nada que lhe aliviasse a tristeza a ela. É quando tudo acaba, irremediavelmente, que muitas vezes dizemos: poderia ter ajudado, poderia ter reparado. Dito uma palavra, feito um gesto... 

Só indiferença. Por todo o lado, só indiferença... 

Adeus, Leonor. Não me lembro já da tua cara, ter-te-ei visto poucas vezes, mas sei quem és. Quem eras. E até eu, esquecida que estava da tua existência, tenho a garganta apertada, custa-me respirar, no momento em que escrevo estas palavras...

Imagem: Igor Svibilsky, em https://www.facebook.com/photo/?fbid=10231332294561462&set=gm.2353474864858272&idorvanity=157947604411020, consultado em 25 Abril, 2024