A minha maquinaria orgânica anda
a precisar, urgentemente, de ser oleada, pois não só me obriga a passar a noite
em interacção com acabrunhantes personagens do quotidiano fabril, como, esta
noite, me pôs a fugir de um galináceo.
Eu estava refastelada num banco
de jardim, em Faro, rodeada de escuríssimos arbustos e obscuras flores. Era
noite. Nisto, oiço:
- Encontrei-te meu amor.
E fechei os olhos. Este ia ser um
sonho de encantar, de romance, o meu tipo de romance favorito: aquele que não
acontece. De repente, ainda envolta em suspirantes delíquios, senti uma picadela
no ombro. Uma senhora picadela, diga-se, de tal modo que me permiti deslizar
para a realidade do meu quarto e averiguar o caso. Seria algum companheiro de
cama que me agredira? Talvez uma das seis almofadas. Mas elas são tão fofinhas!
Ou o equipamento informático (e não só) armazenado debaixo da almofada (inteligente!)
do lado esquerdo: o tablet, o Kindle, o telemóvel, o comando da televisão, o
comando da box, o comando do ventilador, o pacote de lenços, a caixa de
rebuçados para o catarro, a caixa de Strepsils e, triste é dizê-lo, o mata-moscas.
Seria possível uma tal agressão por parte de um destes amiguinhos nocturnos? Abri
os olhos. Felizmente, continuava no jardim de Faro, mas tinha um bico junto ao
meu nariz e dois olhinhos muito redondos a olharem para mim. Era um galo! Levantei-me,
fazendo uma prece com os dedos em cruz e
tentando, até, fazer a dança da chuva, junto a um canteiro. Mas o galo
continuava ali, com as asas muito abertas e espanejantes. Mais: vinha, pata
ante pata, de bico em riste, na minha direcção. Pior: ouviu-se, algures da
figura da ave:
- Sou eu, amor.
- Quem? – Respondi. – Como se
atreve?
E ele, teimoso, avança,
esvoaçante e penugento, directo a mim. Foi quando decidi pôr-me em fuga,
espavorida, pelas ruas da cidade.
As portas das casas reluziam,
fechadas. Das janelas, espreitavam as cortinas, em desalinho de curiosidade. As
ruas iam ficando mais estreitas e mais vazias. Éramos apenas eu, em correria, o
galo, em esforço cacarejante, e os postes de luz, altos e hirtos, espalhando
uma luz miúda.
Estava a ser muito cansativa
aquela correria infernal. O bicho não se cansava. Mas, nisto, não só deixei de
lhe ouvir o estampido das unhacas no empedrado das ruas, como vislumbrei o
jardim onde estivera, há não muito, tão sossegada. Rumei para lá, a arfar.
Sentei-me num banco e ouvi:
- Estou aqui, meu bem.
O galo? Olhei. Não. Era um homem,
muito bem vestido, um pouco démodé, com um chapéu de feltro na cabeça, da qual
se elevava uma frondosa pena.
- Hein? – disse eu.
- Hoje é dia de amá-la.
- A mim?
- Claro, meu benzinho fofo. Hoje
é dia 29 de Fevereiro.
- Ah! Desculpe. Estou cansada.
Fui atacada e perseguida por um galo. Doem-me os pés de tanto correr… Foi
horríiiiiveele!
- Um galo? Olhe que não. O meu
benzinho está aí desde que cheguei. Muito estranha. Eu chee..
- Não viu um galo? Uma ave imensa
cheia de penas??
- Não, benzinho. A coisa mais
parecida com uma ave, diga-se, sou eu, que me engalanei com uma pena para a
homenagear.
- Pena de galo?
- De pavão. Pavão!
- Então está a dizer que eu sou
mentirosa, que não aconteceu nada?
- Aconteceu sim, a fofa, assim
que eu cheguei, ficou muito inquieta. Disse umas palavras misteriosas e depois
foi para o canteiro aos pulos…
- Desculpe? Euuuu? Aos pulos?
- Sim. Era uma espécie de co…
coreografia. Destruiu as plantas todas e arrancou os goivos pela raiz. Olhe!
- E não fez nada? SE eu fiz isso,
por que razão não me agarrou?
- Por causa da poeira, amorzinho
fofo. Veja como está cheia da terra.
De facto, havia sobre mim um
imenso véu de terra e até algumas ervas. Não podia ser! Expliquei então que
tinha sido a correria pela cidade, com as estradas cheias de buracos e com a
criatura penugenta a levantar imensa poeira com as patas. E perguntei ao homem
démodé, engalanado, se já tinha visto as unhas dum galo.
- Que pergunta, gatinha fofa.
Venha aqui para a espanejar.
- Deixe-me. Não me espaneje! Vou
embora.
- Fofa! Fofa, estamos a ter a
nossa primeira discussão. Deixe-me estreitá-la em meus braços…
E arregalou os olhos, muito
contente.
Abraçamo-nos. E, do jardim de
Faro, fomos transportados para uma bela casa. Era um sítio antigo, de tectos
altos, amplo, com uma sugestão de reposteiros de veludo grená e mobília escura
e elegante. A roupa começou a sair do nosso corpo, espalhando-se pelo chão, que
brilhava sob a luz de um candeeiro de cristal. Felizmente não ficámos nus, o
que seria muito impróprio e indiscreto. Em vez disso, à medida que a roupa
saía, íamos ficando cobertos de uma penugem longa e macia, que ondulava. E foi
nestes preparos que iniciámos uma sessão de beijos, com os lábios unidos em
ventosa, que terminou aos rebolões no chão. Entre beijos e cabeçadas nas paredes e
mobiliário, sempre de rojo, com evidente benefício para o enceramento do
parquet, corremos toda a casa descendo, até, compridas escadarias. Por vezes, parávamos,
ofegantes, um pouco lilases até, já a arroxear, enchíamos os pulmões e, antes
de continuarmos o deslizamento beijoqueiro e cabeceante, olhos nos olhos, eu
dizia-lhe:
- Ai, querido. Que cabeçada!!
E ele, enlevado e esfuziante de paixão
incontida, retorquia:
- Cabeçada? Eu não tenho cabeça!
O meu bem fez-ma perder.
Mas tinha eu, e dorida. A testa,
um verdadeiro catálogo dos abundantes galos que iriam despontar.
Aos primeiros minutos do dia 1 de Março, o meu homem elegante e démodé desapareceu. Foi-se. Eu fiquei só e pensei: o meu primeiro sonho de amor. E foi tão lindo!
https://br.pinterest.com/pin/216665432057912001/?nic_v2=1a2JU1DAN, em 27 de Setembro, 2020