Não
sou admiradora do cinema de Manoel Oliveira. Compreendo a sua assinatura única,
a originalidade, o estranhamento. Enfim, aquelas coisa que se associam a cinema
“highbrow”, a literatura “highbrow”, a cultura “highbrow”, etc. No que respeita
à literatura, porém, como gosto mais de palavras do que de imagens, consigo “sofrer”
a leitura de certos livros – impenetráveis (chatos!) - até ao fim. Tal não
acontece, contudo, em relação ao cinema. Para mim, cinema é sobretudo entretenimento.
Do cinema, quero emoções fortes: riso e/ou emoção. Não quero estar encerrada
numa sala claustrofóbica a admirar, em silêncio, imagens lentas, perturbadas apenas
por falas curtas proferidas por personagens estátua. É esta, aliás, a memória
que me ocorre, quando recordo a visualização de “Francisca”, em Coimbra, no Gil
Vicente.
Tínhamos
ido ao cinema, eu a E e o C, instados pela F, grande leitora dos Cahiers du
Cinema e espectadora de festivais de cinema de autor. Lá fomos, também, devido
ao facto de a mulher de um nosso professor fazer parte do elenco. Éramos todos
estudantes universitários na plateia – embora não parecêssemos. Lembro-me de
ouvir risos e alguns impropérios, do tipo: não há pachorra! Lembro-me, também,
de ver uma das personagens, no grande ecrã, a segurar um coração de carne e
lembro, ainda, o barulho de passos a abandonar a sala. Isto tudo antes de
adormecer no ombro do C. O nosso grupo tinha decidido que permaneceria até ao
fim, e assim foi, para não sermos alvo da ira da F, como tinha acontecido com o
filme “Os abismos da meia-noite”. Acabou por não ser uma má noite de cinema,
embora nenhum de nós soubesse dizer porquê. A F, satisfeita com a nossa “envergadura
intelectual”, tomou o nosso mutismo por admiração e fez o favor de nos explicar
todo o simbolismo da história. Ficámos agradecidos.
Um
dia, porém, já na Covilhã, apanhei na televisão o filme “Os Canibais”, um dos
filmes da minha vida. Inexplicavelmente, hoje, nos artigos sobre a morte do
cineasta, só li uma pequena referência a este filme. Será demasiado comercial?
Talvez. Pessoalmente, acho-o grandioso, desconcertante, mais: humorístico. Se me
dissessem que daria uma gargalhada num filme de Oliveira, não acreditaria.
Depois, aquele homem que se desconjunta, cada parte do corpo para seu lado,
faz-me lembrar o conto de Poe, “The man who was used up”. Aliás, aprecio bem
mais os contos “witty” de Poe, do que os de terror, embora goste de “The black
cat”. O final de “Os Canibais”, por sua vez, é igualmente inesquecível: se bem
me lembro (má escolha de palavras), pessoas com cabeças de animais rodopiam em
torno de um lago em frente de uma casa antiga, belíssima. “Os Canibais”, numa
palavra, ou duas/ou pouco mais? Uma obra de arte preciosíssima!
Para
mim, Oliveira é o realizador desse filme. É também um modelo de uma vida bem
vivida e longa. Uma vida invejável, no bom sentido. Até na morte, não estando,
que se saiba, debilitado durante muito tempo a sofrer, pode dizer-se que foi
vitorioso: o coração, certamente cansado, limitou-se a parar.
RIP
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